Uma sociedade que não se funda nos laços da solidariedade, da tolerância e da esperança é também sem compaixão

Por Heloisa Starling e Sérgio Abranches

O Fliaraxá, convocou, em 2020, para sua nona edição dois patronos, dotados de personalidades marcantes, singulares e que são figuras lendárias da literatura brasileira, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Foram convocados para serem celebrados como grandes de nossa cultura. Mas, também, para nos falar de um Brasil permanente, sem voz e sem vez, povoados por severinos e macabéas. Foi por meio desses personagens que a escritora e o poeta nos legaram uma visão de país, necessária, doída, mas que nos lembra que enquanto tivermos o direito ao grito, gritaremos, para dar voz aos que não as tem, tornar visíveis os invisíveis, dar vez a todos na república que podemos construir. Uma obra inacabada, para a qual não temos respostas prontas e, por isso mesmo, a manteremos em construção porque é o nosso sonho e a nossa obrigação.

Nossos dois patronos têm mais em comum do que se poderia esperar de um poeta pernambucano, de voz agreste e voltado para as agruras sociais, e uma escritora nascida na Ucrânia com o nome de Haia, que se tornou Clarice, em Alagoas, e que escreveu uma obra quase inteira às dores existenciais da classe média. Eles se encontram em suas obras mais populares, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Quem faz, concretamente, a união entre eles são dois personagens que se tornaram ícones da solidão do retirante, do outro, que deixa suas raízes para fugir à miséria e chega ao seu destino, quando chega, miserável. O outro que nunca deixa de ser isto, “o outro”, o de fora, o sem lugar.

São homens de vida severina, diria João Cabral. E Clarice Lispector rapidamente acrescentaria: são mulheres de vida macabéa. Não tem nome próprio, nem direito à personalidade legal de cidadãos, que lhes daria mínima proteção e a capacidade de agir na cena pública. São vítimas de uma dupla injustiça – a injustiça da urgência da sobrevivência e a injustiça da vergonha da obscuridade. Mulheres Macabéas e Homens Severinos são qualquer um que a sociedade brasileira descartou – o refugo humano, o indivíduo que não tem (ou não pôde ter) reconhecimento e visibilidade. Estão irremediavelmente presos a um país que lhes nega aquilo de que carecem profundamente: uma esperança de escapar da miséria, um lugar social estável, um retalho de sonhos e a chance de exprimir os parcos desejos por meio do controle da linguagem e da capacidade de expressar os próprios pensamentos. Obras como A hora da Estrela e Morte e Vida Severina nos ajudam a ter a consciência de que é preciso que todos nós, na pluralidade de nossas visões e modos de agir, nos esforcemos para tirar a multidão de Macabéas e severinas da solidão de olvidados.

Os estilos dos dois autores não podiam ser mais diferentes, Clarice é amargurada, João Cabral é indignado. Ambos são secos. É na proximidade quase íntima, entre Severino e Macabéa, de mesma vida e morte “severinomacabeana” que os dois grandes autores brasileiros se encontram para nos falar da mesma tragédia social, em dois gêneros. Os homens severinos e as mulheres macabéas, têm a mesma vida e se encontram no mesmo trajeto, “essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão”, como diz o poeta. Uma gente humana de “delicada e vaga existência”, esquecida e despossuída, que não encontra seu lugar, porque não o tem. São pessoas na maioria inocentes, que, como Macabéa, “às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso, porque nem a olham”. Na inquietante dedicatória que abre A Hora da Estrela, Clarice aponta o contexto das vidas macabéas e severinas que ela e João Cabral conceberam como grito e como lamento por aqueles que não têm vez ou voz. “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta.”

Sós, numa sociedade que não os vê, nem os ouve, macabéas e severinos querem, no fundo, apenas estender a vida um pouco mais. A mulher macabéa defende-se “da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar”, nos conta Clarice. O homem severino nunca esperou muita coisa, “o que me fez retirar não foi a grande cobiça, o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta. Se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda.” É como nos canta João Cabral sobre esta mesma busca de espichar um pouquinho a parca vida.

Já decantadas do “tempo da obra”, as marcas de contundência do poema de João Cabral e do romance de Clarice, podem ser outras e mais largas, indicando sua atualidade e permanência no tempo. Uma delas salta aos olhos de quem anda pelas principais cidades do país e consegue ver o que permanece invisível aos brasileiros: o aumento exponencial da população sem teto, as ondas de lixo quebrando pelas ruas, os prédios sucateados, as casas deterioradas. São vítimas de uma dupla injustiça – da urgência da sobrevivência e da vergonha da obscuridade. Filhos de um “não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço”, descreve Clarice. Severinos e macabéas têm “um viver ralo”, sem propósito, e têm dificuldade em ver a diferença entre viver e morrer. A esperança de ambos é incerta. “E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida, mesmo quando é assim pequena, a explosão, como a ocorrida, como a de há pouco, franzina, mesmo quando é a explosão de uma vida severina,” diz Severino na pena de João Cabral. “A nordestina não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não — pois não é que estava viva?” É como Clarice vê essa esperança rala. A vida severina e macabéa, é uma só em dois gêneros, é miserável, mas não “havia nela miséria humana”. O “futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim.”

Nas mulheres de vida Macabéa há um sentido agudo de alienação. Alienação vivida como desamparo. Desamparadas transcendentais, Macabéas são mulheres sem passado e sem história em um país regido pela indiferença. A Macabéa de Clarice vivia numa espécie de atordoado limbo, entre céu e inferno”. Ela “vivia de si mesma, como se comesse as próprias entranhas”. João Cabral, por sua vez, diria que homens severinos e mulheres macabéas, são os brasileiros que hoje vivem uma condição de desterro criada pela República no interior do próprio país. A permanência dessa nova e absurda modalidade de degredo é capaz de conformar o trágico destino da gente anônima e insignificante, simples e obscura, movimentando-se, precariamente, no vazio da nação, à mercê de uma República que não os reivindica nunca. Ainda hoje essa gente continua se equilibrando nas ruas e periferias das cidades, sem acesso aos bens, às leis, a um catálogo mínimo de direitos, ao mundo político da República. “Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.”

João Cabral talvez tenha escrito “Morte e Vida Severina” de olho no Brasil que lhe foi dado viver, mas pensando em nós, no futuro. Pode ser essa a outra marca do poema. De que laço humano é feita a substância profunda de uma sociedade como a brasileira? Uma sociedade que não se funda nos laços da solidariedade, da tolerância e da esperança — o conjunto de valores que sustenta a narrativa do poema e semeia o percurso do retirante Severino — é também sem compaixão, “não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão”. A conclusão é do filósofo holandês, Baruch de Espinoza, no século XVII; mas o autor de “Morte e Vida Severina”, talvez não discorde dela.

Clarice Lispector escreveu a sua vida macabéa, como ela mesmo disse, em estado de emergência pela calamidade que vivia o país no final dos anos 1970. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever”, desta forma ela começa sua tessitura da vida macabéa, “eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes”. E ela nos responde incisiva, se olhava mesmo para a desolação social do Brasil, “é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio e não vós.” Clarice escreveu a Hora da Estrela, quando deixa a vida interior objeto de sua obra anterior, para escrever uma “história exterior e explícita”. Mais que ficção íntima, a história da mulher Macabéa, era uma obrigação. “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira.” As vidas macabéas e severinas não se inventam. “O que escrevo é mais que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito.”

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