cultura

Por Chico Mendonça

Para ver e medir toda a vida que há dentro e em torno de uma língua, usar a régua do tempo é imprescindível. Principalmente, no caso da língua portuguesa, e seu corpo formado de tantas línguas em português. Se a navegação fez naufragar o apego à ilusão de uma língua nacional e pura séculos atrás, nos dias de hoje sua unidade e riqueza se dão pela mestiçagem manifestada na infinidade de ruas que cruzam os nove países de fala portuguesa. Nem lusofonia se adequa mais, insiste Afonso Borges, porque o termo traz memórias dolorosas dos tempos coloniais. E descolonizar é preciso, mais do que nunca, tal a delicadeza da fase atual desse processo: a descolonização das mentes, dos que colonizaram e dos que foram colonizados.

No terceiro dia do Fliaraxá, o equívoco do Acordo Ortográfico de 1990 foi se desenhando, a caminho do consenso. “Não há nada uniformizável, as diferenças é que enriquecem a língua. A ortografia tem que ser diferente. Não devem ser os governos que decidem isso, porque a língua é livre e pertence ao povo”, defendeu a escritora portuguesa Teolinda Gersão, na Mesa “Escrever em língua portuguesa”. Seu parceiro de conversa, o manauara Milton Hatoum, lembrou que o rompimento com a forma cristalizada da língua é antiga:  “Machado de Assis já não escrevia como Eça de Queiroz”. A Semana de Arte Moderna deu um longo passo nesse sentido, com o surgimento de obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, que utiliza muitas expressões indígenas e africanas. Meu Tio Iauaretê, de Guimarães Rosa, é outro exemplo do uso de uma linguagem nova, repleta de contribuições linguísticas alheias ao português. “É o limite possível do que se pode fazer usando linguagem de vários troncos linguísticos, incluindo o mais arcaico português. Uma linguagem mestiça e transgressora”, avaliou Hatoum.

Transgressões não devem faltar para a evolução de uma língua e das diversas culturas que ela compartilha. Do contrário, ficaria impermeável a essas contribuições que o modernismo libertou no Brasil. Ou a outras influências de tradições não reconhecidas e mesmo condenadas, como o “pretoguês”. Segundo a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro, na Mesa “Cultura, crença e preconceito”, dividida com o jornalista Xico Sá, a troca do “L” pelo “R” em algumas palavras, como ‘Framengo”, não é manifestação da ignorância, mas herança, mesmo inconsciente, de língua africana que não possui em seu alfabeto a letra “L”. Ela lamentou a morte do tupi e de outras línguas indígenas, por abafamento da língua oficial. Com elas, a diversidade e seus saberes estariam garantidos, bem como potencializada a influência que já exerceu na construção do português falado no Brasil.

Na verdade, mostrou Djamila, junto da assimilação da língua oficial pela pluralidade dos brasileiros, aconteceu também a submissão ao pensar dominante. Na universidade, conta ela, aprendeu o pensamento do homem branco europeu. Da mesma forma, na literatura ainda é hegemônico esse lugar de cor e procedência. Surgem, ressalta, as antologias com espírito de caixas separadas, como de escritoras negras, em lugar do acolhimento de cada um como parte de um todo. Em lugar de uma antologia de escritores e escritoras brasileiros, o racismo estrutural produz coletâneas em forma de caixas que dão sobrevida às hierarquias culturais.

Organizador e professor de um curso on-line sobre crônica, Xico Sá confirmou igual espanto. Segundo ele, as antologias que pesquisou do gênero refletem o amplo domínio de autores brancos sobre autoras brancas, autores e autoras negras. Não se trata, diz ele, de justificar-se pelo espelhamento de uma pré-seleção feita pelos jornais ao longo do tempo, mas da falta de uma pesquisa em outras fontes para encontrar trabalhos que não saíram nos jornas. Ele próprio tratou de incluir no currículo de seu curso capítulos do diário de Carolina de Jesus, em Quarto de despejo. “Não dá para falar em democracia com esse racismo estrutural”, conclui.

Respondendo a uma questão proposta pelo cientista político Sérgio Abranches, sobre qual escritor brasileiro estaria hoje traduzindo o espírito de nosso tempo, a escritora Noemi Jaffe deu nova pista a respeito do momento da evolução da língua. “Não é preciso buscar alguém que expresse o espírito do nosso tempo, porque não temos mais os gênios. Existem muitas pessoas escrevendo e produzindo conteúdos fantásticos em celulares, que respondem às necessidades de seus lugares de viver, mesmo que não tenham a qualidade de um Proust.” Tal afirmação tem a força de uma revelação, e, mesmo que polêmica, sugere novos desafios às línguas vividas em português ou em qualquer outra língua. O movimento descrito por Noemi é universal e, essencialmente, transgressor.

Ao ler o texto acima, Afonso Borges sentou diante do computador e escreveu. Neste campo, Afonso Borges, ao ser inquirido sobre a determinada “concorrência” que a imagem e o cinema estabelecem com o exercício da leitura, disse: “A leitura  induz o  cinema interno”.

E nada mais tendo sido dito, acabei por decidir que por aqui fico.