fliaraxá

Por Chico Mendonça

Qual o papel de um festival de literatura em tempos tão marcados pelo espanto diante da desconstrução de marcos civilizatórios? O que esperar dos livros se a empatia entre pessoas vê-se ameaçada tão logo são identificadas as diferenças? O que pode fazer a leitura contra o desamor que anda pelas ruas e pelos gabinetes? A resposta é simples e objetiva: à literatura, aos autores e leitores, cabe resistir, deixar o cercadinho do discurso pronto e descobrir uma nova fronteira a ser desbravada. Porque, contra o velho, só o novo é capaz de oferecer combate vigoroso.

No Festival Literário de Araxá, uma resposta surgiu na fala de Mia Couto, durante a realização do debate – ele próprio já situado nesse espaço de fronteira nova – “O Futuro das Almas e do Planeta”, em diálogo com o líder indígena e pensador Ailton Krenak e mediado por Afonso Borges. Disse o moçambicano: “A esperança não pode ficar no lugar de espera, da expectativa”. Como lugar de espera entenda-se também a visão cristalizada, o lustro dado diariamente às crenças sem espelho que permita analisar acuradamente olhar.

Tentar entender o que realmente acontece, mais além da dualidade, da luta mitológica do bem contra o mal, do certo contra o errado, fabricante de separações na forma de caixas e gavetas, do tipo “literatura negra”, “escritores africanos”, “escritores europeus”, quando o universo real é o da literatura e o dos escritores, observadas suas peculiaridades e não os seus rótulos. Sem cercadinhos, a criação liberta-se, as hierarquias constituídas dissolvem-se. De volta à natureza, à nossa natureza, capaz de coexistir com diferenças, porque as diferenças são a própria vida, sempre inteira.

Da memória de Mia Couto brotou caso exemplar: a escolha do português como língua mãe e a proibição das línguas nativas quando da independência de Moçambique. Uma violência contra a cultura que essas línguas protegiam e alimentavam em nome da suposta unidade que a adoção de uma única língua traria. Equívoco anos depois corrigido, com o ensino dos idiomas nativos nas escolas. Da memória lúdica de Ailton, outra dádiva: confinados há cem anos pela delimitação de reservas em terras pedregosas, os Krenak, antes migrantes, aprenderam a tirar leite de pedra, a deixá-lo no sereno para, no dia seguinte, levá-lo à cozinha para fazer biscoitos. Com o advento de novas agressões a seu modo de viver, passaram a misturar leite e lama para fazer iogurte. Reinvenções.

Dias atrás, um grupo de curandeiros foi ao Ministério da Saúde de Moçambique, em Maputo, para uma reunião, da qual Mia Couto participava. Queriam oferecer ajuda na campanha de combate ao coronavírus e fizeram um pedido: “Não conhecemos esse bicho, mas quando vocês aprenderem a língua deles, nos digam porque queremos conversar com eles”. Não há no admirado observador da fala dos curandeiros conflito entre ser biólogo, representante da ciência e ser escritor, porque “não há como explicar a vida como se fosse tudo um único pacote. Há nela um mistério que a ciência não consegue explicar, sem que isso diminua a importância da ciência”, disse ele.

Abre-se aqui ligeiro parêntese: na nova fronteira a ser desbravada, em lugar da exclusão proposta pela intolerância, a ideia é incluir outras visões, não apenas por exercício de tolerância, mas para se aprender com elas. Empatia. Ou, segundo a generosa oferta deste Fliaraxá, trata-se de criar uma pandemia de alteridade.

A literatura é uma “vasta abertura para outras visões, para uma cosmovisão”, propôs Ailton Krenak. É uma ponte para o “resgate holístico desse mundo”, acrescenta Mia Couto. Ou, ainda, como disse a escritora homenageada Conceição Evaristo, em mensagem para Afonso Borges: “Muitas pessoas devem estar vivendo os sentimentos que esses Melhores Momentos (vídeo-síntese do Fliaraxá postado no site do evento) nos oferecem. O da certeza de que nem tudo é crueza, maldade, secura, inferno. Há muito de água em nós. Há muito de pranto para amolecer a “pedra” e permitir a nossa passagem, apesar dos árduos caminhos”.