por Fernanda Martins

Mesa com Cecília Oliveira, Matheus Leitão e Lívia Sant’anna Vaz, mediada por Jamil Chade, debate o papel da escrita e da memória diante da violência e do apagamento histórico

A força do tema realizado hoje (4/10) teve nos autores a sinergia ideal para a potência da mesa “Justiça: literatura contra o silêncio”. “Quando ouvi o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos ou quase brancos, quase pretos de tão pobres e pobres são como podres… e todos sabem como se tratam os pretos. E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”, Jamil quebrou o silêncio da noite com a canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em denúncia ao massacre do Carandiru, que ocorreu em 1992.

“Diante de crimes, o silêncio não é apenas uma falta de posicionamento… é um crime”, iniciou o mediador Jamil Chade, abrindo o debate com falas de resistência. Matheus Leitão iniciou e respondeu à pergunta de Jamil sobre a retomada do autoritarismo no Brasil atual. “Eu fico vendo esses ventos de hoje como algo que, lá atrás, eu achava que não ia acontecer. Uma ingenuidade daquele início da vida. Depois desse trabalho, especialmente ligado à ditadura no Brasil e aos Direitos Humanos, percebi que havia uma angústia dentro de mim, que tudo isso voltasse a acontecer. Eu acho que o Brasil e a extrama direita brasileira tem um fenômeno único por conta da falta de justiça da ditadura militar. Só no Brasil um presidente foi eleito defendendo a tortura como forma política”, disse o autor do best-seller Em nome dos pais, em que narra as torturas sofridas por seus pais durante a ditadura militar.

Matheus destacou que a tortura é o embrião do Brasil, que ela forjou o Brasil, com a tortura dos povos originários que foram os primeiros a sofrerem quando o colonizador chegou ao Brasil. “A gente tem o retrato, mas não conseguimos saber o nível da tortura que esses povos sofreram aqui no Brasil. Nesse que é chamado descobrimento, Depois, a tortura é colocada por mais 400 anos com a população negra escravizada nesse país. A tortura sempre esteve nessa terra, diante dessas violências que foram colocadas nessa terra”, narrou, além de citar, a Ditadura Militar e o sofrimento que a classe média passa a sofrer: “Quando essa classe média vive essa violência que está no país desde o início, a pauta de Direitos Humanos, finalmente, passa a ter uma bandeira”. 

Jamil pegou o gancho na fala de Matheus e perguntou a Cecília Oliveira, autora do livro “Por que policiais se tornam milicianos” sobre a relação entre milícia e Estado. “Nós não passamos o passado a limpo, a gente insiste em não fazer isso nunca. Não fizemos isso com os povos tradicionais, nem com os povos escravizados, nem com a ditadura e quase não fizemos com o 8 de janeiro”, afirmou. Para Cecília, “se a gente tivesse passado a limpo não só a Ditadura”, a história seria diferente. Isso porque, os crimes de grupos de extermínios e milícias foram institucionalizados durante o regime militar. Ela explicou que a imagem do miliciano carioca, com sua estética e vestimenta repetidas na TV, mascaram um poder paralelo alimentado por estruturas do próprio Estado. “Se tem uma coisa democrática nesse país são os grupos de extermínios. E é isso que eu analiso no meu livro, com o ato de fazer justiça com as próprias mãos. Esses grupos são treinados pelo Estado, usando viaturas do estado e pagas com o nosso dinheiro, nossos tributos”, conta a autora que deixa claro o quanto é muito mais fácil e tranquilo cometer crimes quando essas pessoas estão trabalhando. “É muito mais fácil que esses crimes sejam cometidos enquanto essas pessoas estiverem com as fardas do Estado e com tudo perfeitamente legal.”

Para aprofundar a discussão sobre o papel do Estado, Jamil perguntou a Lívia Sant’anna Vaz quem seria esse Estado. A autora falou sobre as vozes silenciadas e o papel da literatura em estilhaçar as máscaras do silêncio, parafraseando a expressão popularizada por Conceição Evaristo. Autora do A justiça é uma mulher negra, Lívia explica que se sabemos onde estão as pessoas negras no Brasil e onde estão pessoas brancas existe apartheid, existe segregação. Ela traz a Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, que foram um conjunto de leis que vigorou em Portugal e seus territórios, como o Brasil, a partir de 1603 para exemplificar mais do apartheid citado por ela. “O livro 5º das Ordenações trazia, por exemplo, como crime a feitiçaria, em que a pena máxima era a morte. Em 1890 (menos dois anos após a lei que declara abolida a escravidão no Brasil), nós temos um livro dedicado à criminalizar a capoeira e a vadiagem. De novo eu não preciso dizer que é sobre pessoas negras”, pontua e lembra que é preciso se lembrar a origem da polícia militar no Brasil que surge com a vinda da Família Real para a manutenção da segurança e silêncio para os membros da corte. Além disso, com a extinção da função do capitão do mato, em 1820, a divisão militar passou a ser responsável por perseguir pessoas negras escravizadas fugidas e invadir quilombos. 

Matheus retomou a conversa para falar sobre o jornalismo e o rompimento do silêncio. “Eu estava pensando muito sobre o papel do jornalista no dia a dia. Acho que a gente tem que mirar nesses lugares em que o pacto da branquitude se sustenta. No Em nome dos pais, eles disseram que estavam ‘a trabalho’ quando torturaram meus pais. Quando fico nesse lugar de jornalista, procuro estar atento a esses espaços de violência. Meus pais eram muito jovens quando foram submetidos a tudo isso, e me tornei jornalista para ficar mais perto deles”, contou.

Ele lembrou o episódio em que entrevistou o coronel Ustra, e de como essa experiência o marcou profundamente. “Foi a primeira vez que um general foi condenado depois de rasgar a Constituição na cara dos brasileiros”, disse, referindo-se ao ex-presidente Jair Bolsonaro. “O papel do jornalista é estar nesses lugares de violência. É doloroso ver que o Brasil não olhou para o seu passado, mas é importante ver generais brancos indo para a cadeia.”

Na sequência, Cecília respondeu à pergunta provocadora de Jamil: “Como nasce um miliciano?”. “Essa pergunta daria um livro”, brincou. “O cabo Bené, personagem principal do meu livro, tinha uma identidade falsa e uma arma com número raspado. Foi subindo degrau por degrau e se tornando estratégico dentro da milícia, em um modelo disseminado pelo país, composto por mini-milícias. Dinheiro é o menor dos problemas. O miliciano do chão de fábrica ganhava em média R$500. O que estava em jogo era o poder. O cabo Bené, quando entrou na polícia, era o último da corporação, e na milícia passou a ser respeitado até pelos que estavam acima dele. O que me chocou foi perceber que tudo estava mais relacionado à honra, à virilidade”, afirmou.

No campo da justiça, Jamil trouxe a notícia recente da descoberta de um cemitério que pode ser o maior de pessoas escravizadas do mundo e perguntou a Lívia até que ponto isso rompe o silêncio histórico. A autora iniciou a resposta citando Nêgo Bispo: “A terra dá, a terra quer”. “Temos muita coisa escondida nesse solo brasileiro. Em Salvador, por exemplo, a arquiteta Silvana Olivieri descobriu vestígios de corpos soterrados pelo esquecimento: ossos, dentes, contas e guias religiosas. O Ministério Público decidiu realizar um ritual fúnebre para devolver dignidade a essas pessoas, porque, enquanto não devolvemos essa dignidade, a terra continuará cuspindo na nossa cara”, disse.

Jamil fechou a mesa com Lívia, retomando a ideia da “justiça de olhos abertos”. Ele lembrou que, em outra ocasião, não havia explicado o conceito e agora o fez diante do público. “O Direito não necessariamente consiste com a justiça. Tem uma coisa que não conto muito em público: no parto da minha segunda filha, logo depois, recebi um recado das minhas ancestrais, com um pedido de desculpas. Elas disseram que não se sentiam dignas. O processo de escrita de Justiça de mulheres negras foi uma forma de cura — e também de curar mulheres que vieram antes de nós”, concluiu, encerrando sob aplausos.

A força do tema realizada hoje (4/10) tem nos autores a sinergia ideal para a “Justiça: literatura contra o silêncio.” “Quando ouvi o silêncio sorridente de São Paulo da chacina… Diante de crimes, o silêncio não é apenas uma falta de posicionamento… é um crime”, foi assim que o mediador da mesa Jamil Chade iniciou a mesa de hoje. O início da conversa foi aberto com Matheus Leitão, que respondeu à pergunta de Jamil sobre a retomada do autoritarismo do Brasil atual: “Eu fico vendo esses ventos de hoje, como algo que olhava lá trás e achava que esse tipo de coisa de hoje não ia acontecer. Uma ingenuidade do início da vida. Depois desse trabalho muito ligado aos Direitos Humanos eu percebi que havia uma angústia dentro de mim que tinha medo de tudo isso voltar acontecer. Só no Brasil um presidente foi eleito defendendo a tortura como forma política”, contou o autor do best seller “Em nome dos pais”, que contou a tortura dos pais na didatura. O autor, aliás, fala da tortura como embrião primário do Brasil, que inicioi no mentiroso “descobrimento”, com a chacina dos povos orifinários, até a ditadura de 1964 que, segundo ele, se torna uma bandeira para o Direito Humanos quando a classe média branca experimenta a tortura que sempre esteve presente no Brasil.

Jamil pega o gancho na fala de Matheus sobre a dificuldade do Brasil em dialogar com o passado para saber de Cecília Oliveira sobre a relação entre milícia e estado e o balanço feito por ela. “Nós não passamos o passado a limpo. Não fizemos isso com os povos tradicionais, não fizemos isso com os povos escravizados, não fizemos isso com a ditadura e (quase) que não fizemos isso com o 8 de janeiro. Os crimes de milícia começa antes, mas eles passam a ser institucionalizados na ditadura”, ela fala sobre a estética presente no imaginário popular ligada ao miliciano carioca e a vestimenta presente na TV. Contudo, ela conta que os grupos de extermínios sempre estiveram presentes em uma tentativa de “tirar do caminho, quem estava atrapalhando”, explica. O poder paralelo no Brasil é disseminado por todos os lugares com pessoas que são treinadas pelo Estado e são pagas com o nosso dinheiro, já que as ações dessas pessoas é blindada. “É muito mais fácil e tranquilo cometer crimes quando você está de serviço. Foi autodefesa. Portanto é muito mais facíl que esses crimes sejam cometidos enquanto essas pessoas estiverem com as fardas do estado.”

Para entender mais sobre esse Estado, Jamil pergunta para Lívia Sant’anna quem seria esse Estado. A autora fala das vozes que deixamos de ouvir, devido ao silêncio. Segundo ela, esse passado só muda quando as histórias são recontadas. No livro “A justiça é uma mulher negra”, Lívia, que é co-autora da obra, traz esse pensamento e fala sobre o apartheid das pessoas negras no Brasil. “Com a extinção da função do capitão do mato a divisão militar se tornou responsável por perseguir pessoas negras escravizadas e por invadir quilombos”, relata. 

Ao romper esse silêncio, Matheus fala sobre a carreira de 25 anos e da entrevista realizada com Ustra, além da função do jornalismo em romper esse silêncio. “Eu estava pensando muito sobre o papel do jornalista no dia a dia. Eu acho que a gente tem que mirar esses lugares em que o pacto da branquitude. No nome dos pais, eles disseram que estavam a trabalho quando torturaram meus pais no quartel. Quando eu fico nesse lugar de jornalista eu procuro ficar atento a esses lugares de violência. Meus pais eram muito jovens quando foram submetidos a essa violência e eu vou para esse papel quando virei jornalista, porque isso me deixava, de certa forma, para mais perto deles”, conta ele que quando chegou à casa do Ustra para fazer uma entrevista: “história dele batendo as mãos na mesa” Em uma linha contínua, Matheus fala que foi a primeira vez que um general foi condenado, após rasgar a constituição na cara dos brasileiros, ao referir à condenação do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. “O papel dos jornalistas é estar nesses lugares de violência. É doloroso ver que o Brasil não olhou o seu passado, mas é muito importante ver que generais brancos vão para cadeia”

Como nasce um miliciano? “Essa pergunta realmente daria um livro [risos]. A pessoa vai subindo degrau em degrau. O cabo Bené, que é o personagem principal do livro, ele tinha uma carteira de identidade falsa e uma arma com número raspado. Ele seguiu subindo os degraus e foi estratégico dentro da milícia, em um modelo disseminado por todo o país, que consiste em mini-milícias. “Dinheiro realmente é o menor dos problemas. O miliciano do ‘chão de fábrica’, realmente, ganhava muito. Em média era R$500. Até que eu entendi que estava mais relacionado ao poder. O cabo Bené quando entrou na polícia era o último dentro da corporação e quando ele passa para a milícia, ele tem a companhia de polícias que estavam acima dele na corporação. As pessoas passam a te respeitar absurdamente, ficam em silêncio… elas têm acesso a algo a algo que, normalmente, não está disponível. O mais me chocou foi saber que tudo estava mais relacionado à honra, a virilidade…”

No campo da Justiça, Jamil traz a notícia da descoberta do cemitério do que pode ser o maior cemitério de pessoas escravizadas do mundo. Ele pergunta à Lívia até que ponto isso é uma ruptura ao silêncio. A autora inicia a resposta com Nego Bispo e “a terra dá, a terra quer”. “Temos muita coisa escondida nesse solo brasileiro. Estamos descobrindo em Salvador através de uma pesquisa realizada pela arquiteta Silvana XXX, a partir de um relatório da Santa Casa. Ela consegue descobrir esses corpos que foram soterrados pelo esquecimento. Essa pesquisa já se iniciou e há vestígio de osso, dentes, contas e guias religiosas nesse acervo que já foram encontrados”, ela explica que o MP decidiu fazer um ritual fúnebre para essas pessoas “porque enquanto não devolvermos essa dignidade para as pessoas deste país, a terra vai continuar cuspindo na nossa cara”, falou Lívia citando Nego Bispo. 

Jamil fechou a mesa com Lívia falando sobre quando foi convidado para falar no conselho de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas. Ele contou que tinha acabado de ler “A justiça é uma mulher negra” e levou a ideia de justiça com olhos abertos. “Isso foi um choque para os cartesianos do Direito e eu também disse que ela era uma mulher negra. Eu não expliquei, inclusive para deixar um incômodo no ar”, falou e direcionou a pergunta para a autora: “Como você transforma leis em justiça?”. Lívia iniciou a fala dizendo que o Direito não necessariamente coincide com a justiça. “Tem uma coisa que não conto muito em público (que eu respiro até para não me emocionar) parto da minha segunda filha foi muito difícil, por questões de segundos nós duas nem estaríamos aqui. E logo depois do parto, ainda no hospital, eu recebi uma mensagem muito importante (vou deixar vocês pensarem como eu recebi essa mensagem). Foi um pedido de desculpas das minhas ancestrais: ‘Desculpa por você ter passado por tanta dor e tanto sofrimento, mas é que nós não nos sentimos dignas de parir naquele contexto.’ E logo depois inicia a pandemia, isolamento social e eu começo a escrever esse livro [“A justiça é uma mulher negra”] e foi muito difícil escrever sobre as dores dessas mulheres, que precisaram aprender como abortar, mulheres que serviam como ama de leite para mulheres brancas e não podiam amamentar. O processo de escrita desse livro foi uma forma de cura para mim também e das minhas ancestrais”, finalizou.

Sobre o 13.º Fliaraxá
 O 13.º Fliaraxá ocorre de 1.º a 5 de outubro, no Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá. O evento acontece em mesas de conversa com escritores, lançamentos de livros, prêmio de redação, atividades para as crianças, apresentações musicais, entre outras. Todas as atividades do Festival são gratuitas.

Há 13 anos, a CBMM apresenta o Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá –, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, com a parceria da Bem Brasil e o apoio cultural do Centro Cultural Uniaraxá, da TV Integração e da Academia Araxaense de Letras.

Serviço:
13.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá
De 1.º a 5 de outubro, quarta-feira a domingo
Local: Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá (Av. Ministro Olavo Drummond, 15 – São Geraldo)
Programação digital: YouTube, Instagram e Facebook – @fliaraxa
Entrada gratuita