O escritor Antonio Carlos Secchin, autor de, dentro outros livros, “João Cabral: Uma Fala Só Lâmina” e “João Cabral de Ponta a Ponta”, é um dos curadores do XI Fliaraxá. Perito na obra de Cabral, Secchin concedeu a entrevista abaixo, contando um pouco mais sobre o patrono da nona edição do Festival.

 

– Qual a importância em celebrar o centenário de João Cabral do Melo Neto no IX Fliaraxá?

O Fliaraxá faz justiça a um dos maiores poetas da língua portuguesa. Ele e Clarice Lispector, outra homenagaeda, tão diferentes na linguagem, nos temas, nos gêneros que praticaram.  Mas tão próximos na grandeza de suas obras.

 

– Quais as características da escrita de João Cabral de Melo Neto, na prosa e na poesia?

Ele confessava ter dificuldades na prosa, mas ainda assim sairá pela Alfaguara um alentado volume com seus ensaios e entrevistas. Curiosamente, se sua poesia se caracteriza pela quase ausência da primeira pessoa do singular, pela aversão ao confessionalismo na busca de uma “antilira” contrária ao lirismo tradicional em língua portuguesa, nas entrevistas ele não se negava a fornecer muitas informações biográficas. O artista nunca consegue fugir de si, ainda que, no caso da poesia dele, esse eu se transforme num “ele”, ou num “outro”, que indiretamente o representa.  

 

– Quais os principais elementos presentes na obra do autor?

Essa contenção do sujeito de que falei, gerando uma poesia mais interessada em ver o mundo do que ser vista ou aclamada  por ele. Também a preocupação social é uma constante, mas num discurso que não soa jamais panfletário ou demagógico.

 

–  Mesmo falecido há 20 anos, o autor continua a fascinar gerações de leitores. A seu ver, o que na obra de Cabral mantém essa admiração?

A meu ver, esse rigor de construção e contenção, algo raro na poesia brasileira, muito povoada dos adeptos da pura “inspiração”, sem domínio técnico. E, quanto ao conteúdo, as chagas  sociais que ele denunciou há meio século continuam, infelizmente, abertas.

 

– Nascido em Pernambuco, morou em vários lugares. De que forma estes lugares influenciaram em sua literatura, tanto na Prosa quanto na poesia?

Tanto na prosa quanto na poesia: se ele saiu de Pernambuco, Pernambuco jamais saiu dele. Mas o poeta  uniu-se também ao ardor e às artes sevilhanas, compondo uma espécie de par ideal, em que o princípio da máscula resistência ao real era representado por Pernambuco e o da sedução e do  aconchego femininos cabiam à Andaluzia.

 

– Como era a relação de João Cabral com os autores brasileiros da época?

Algo restrito. Foi amigo, até certo período da vida, de Drummond. Amigo também de Murilo Mendes e de Lêdo Ivo. Poucos autores brasileiros são homenageados em sua poesia. Alegava que, sendo diplomata, com vida no Exterior, não podia acompanhar o que aqui se produzia. A grande exceção foi o também poeta pernambucano Joaquim Cardozo, a quem considerava um mestre, e a quem dedicou numerosos poemas.

 

– O Sr. pode falar da amizade do autor com o artista plástico Joan Miró? 

Conheceram-se em Barcelona, no primeiro posto diplomático de Cabral. Lá, ele se reuniu a artistas de vanguarda e, em 1950, publicou um precioso livro, Joan Miró, com  gravuras originais  do pintor catalão, em tiragem de apenas 130 exemplares. Trata-se do mais  longo ensaio que ele escreveu, uma atilada interpretação da pintura de Miró, e muita coisa que ele destaca no pintor poderia ser transposta para sua própria produção poética.

 

– Sobre o livro de poesia completa  do autor, organizado pelo Sr., e que será lançado neste primeiro semestre. Como foi organizar este trabalho, de que forma foi organizado?

Já organizei duas edições da poesia completa de Cabral, uma em 2008, para a Nova Aguilar, outra em 2014, para a Glaciar, de Portugal, em convênio com a ABL. A ideia é fazer na Alfaguara  a edição o menos imperfeita possível, corrigindo os cochilos detectados nas anteriores. Quando preparei a  de 2008, corrigi mais de 400 erros da publicação que precedeu a  minha! Agora, felizmente, o número de alterações tende a ser mínimo. Duas novidades: vou introduzir  várias correções que o poeta deixou assinaladas e nunca foram aproveitadas. E a professora Edneia Ribeiro está se ocupando de uma seção de “Dispersos e inéditos” que acrescentará cerca de 40 poemas ao conjunto conhecido de sua obra.

 

– Sobre o relançamento de João Cabral de Ponta a Ponta, quais as novidades desta edição? 

Em 2014, saiu pela Cosac João Cabral: uma fala só lâmina. Com o fechamento da editora, o livro desapareceu, só sendo visto no sites de sebos a preços extorsivos. A CEPE, de Pernambuco, convidou-me para reeditá-lo, e tratei de acrescentar o que, infelizmente, não pôde constar , por decisão da Cosac, do livro de 2014:   uma  substancial  entrevista que ele me concedeu, no dia em que nos conhecemos, em 1980; uma palestra, creio que a última de sua vida, que ele proferiu, a meu convite ,na Faculdade de Letras da UFRJ, seguida de debate, em junho de 1993;um caderno de imagens, com preciosas dedicatórias do poeta. Acrescente um ensaio inédito, estudando as complexas relações dele com Drummond, da afinidade inicial ao afastamento a partir de meados da década de 1950. E, por fim, o livro vai sair com o título que eu preferia tivesse sido o adotado já em 2014: de ponta a ponta, não só  pela relevância da “ponta”, da “faca”, da agudeza na obra do poeta, mas porque, estudando-a desde o primeiro até o vigésimo e derradeiro livro de sua lavra, eu a percorro, literalmente, “de ponta a ponta”.

 

Sobre Antonio Carlos Secchin

Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro. Poeta e ensaísta, é membro da Academia Brasileira de Letras e Professor Emérito da UFRJ. Autor de mais de 15 livros, entre os quais  Desdizer  (poesia reunida, 2017), João Cabral: uma fala só lâmina (2014) e Papéis de poesia – Drummond & mais (2014). Organizou, entre muitas outras,  edições das obras poéticas de Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Colaborou com centenas de textos nos principais periódicos de cultura do Brasil e do exterior. Em 2013, o livro Secchin: uma vida em letras reuniu cerca de 90 artigos, ensaios e depoimentos acerca de sua contribuição nos campos do ensaísmo, da poesia, da ficção, do magistério e da bibliofilia.