Por Rafael Nolli, professor de geografia e literatura, curador da programação infantil do Fliaraxá

Muros são feitos para separar, para conter, para impedir que pessoas circulem. Dia desses, em uma sala de aula, me perguntaram qual seria um bom assunto, na atualidade, que poderia ser tema de vestibular. Uma pergunta que sempre me fazem, na expectativa de ativar no professor o módulo Mãe Dinah. Querem saber de algo que não esteja nos livros didáticos, mas que pode, por sua relevância, ser o tema da redação do Enem, ou o assunto daquela questão que sempre aparece de surpresa e que ninguém havia se atentado para ela.

Na ocasião, pensei nos muros visíveis e invisíveis que surgiram no mundo contemporâneo, sobretudo em um mundo globalizado que prometia a dissolução das fronteiras, com a circulação das pessoas por uma aldeia global. Milton Santos (o mais importante nome da geografia, disciplina que ministro) já havia nos advertido que essa globalização não passa de uma fábula, que a realidade seria outra, mais dura. Ele usa o termo “perversidade” para mostrar que, no lugar do fim das barreiras, os muros iriam abundar, acima de tudo para separar as populações mais pobres dos grandes centros urbanos (como o morro da favela da Santa Marta, no Rio), como o Muro de San Isidro e San Fernado, na Argentina. Impossível não lembrar do Muro da Vergonha (erguido por Israel, na Cisjordânia), do Muro do Trump (que não bastasse o disparate, seria “pago pelos próprios mexicanos”); impossível não mencionar os muros erguidos contra os refugiados da primavera árabe, contra os refugiados das Guerras contra o Terror, do Bush, contra os refugiados da Guerra da Síria… Guerras não faltam para servir de exemplo, como não faltam os seus respectivos muros: o muro que a Espanha ergueu em Marrocos, o muro que a Grécia ergueu na fronteira com a Turquia para barrar os afegãos… Os muros simbólicos, erguidos com os tijolos das leis (aqui parafraseando Drummond) em forma de restrições severas contra migrantes…

Digo isso, pois em Araxá, no interior de Minas Gerais, um festival literário decidiu erguer um muro. Ao contrário de todos os muros citados, esse não tinha como meta conter, segmentar, separar, impedir ninguém de fazer a travessia. O projeto, que nasceu em 2022, ganhou o nome mais exato: Muros Invisíveis. A proposta era ousada e continua sendo ousada, pois tem um ar de ineditismo, de novidade, de ação corajosa. Explico: uma equipe de curadores negros, aliadas a um fotógrafo negro, receberam a missão de selecionar personalidades negras, vivas, para serem fotografadas. Ano passado, o tema era afro-empreendedores da cidade de Araxá.

O nome foi escolhido por Marisa Rufino, uma das curadoras da exposição, que levantou a questão: ainda que a população negra seja a maioria numérica no País, essa é uma minoria em muitos espaços, dentre eles nos festivais literários, nos ambientes culturais (ainda que a população negra tenha contribuído de forma imensa para a formação cultural nacional); minoria nos cargos de chefia, etc. O título da exposição busca denunciar a “invisibilidade” dos negros nesse País essencialmente negro.

Esse ano, a escolha não poderia ser mais oportuna: 43 professores e professoras negras foram escolhidos, devidamente fotografados e expostos em um painel de 100 metros, que iluminou toda a fachada de entrada do evento. Professores, essa classe que recentemente tem sido acusada de todos os despautérios e disparates – há quem tenha, muito recentemente, dito que eles são piores que traficantes.

Indo além dos livros, o Festival Literário de Araxá se expressa com palavras, artes visuais, dança e oficinas (Foto: Gabriel Andrade)
Indo além dos livros, o Festival Literário de Araxá se expressa com palavras, artes visuais, dança e oficinas (Foto: Gabriel Andrade)

Esses Muros Invisíveis não vão cair no Enem, o que é uma pena. Não serão tema de nenhuma questão nos grandes vestibulares do País, o que é uma pena. Entretanto, pensem aqui comigo: esses professores e professoras formaram um paredão, na entrada de um dos maiores eventos literários do País. Estão ali, com seus sorrisos largos, convidando a todos para entrarem naquele mundo onde os livros são os protagonistas e a formação de leitores uma das maiores metas. São 43 homens e mulheres que não querem impedir ninguém de entrar naquele espaço, muito pelo contrário, são os rostos convidativos, que demonstram que naquele ambiente, durantes aqueles poucos dias, todos são bem-vindos, que tudo que ali dentro ocorre (debates, lançamentos, shows, contações de histórias) foi feito a partir de uma ótica inclusiva, antirracista; um Festival que se coloca ao lado das pessoas que lutam diariamente para levar conhecimento, em um país profundamente racista, profundamente anti-intelectual. Aí está a ousadia do Fliaraxá, que tem como mentor o gestor cultural Afonso Borges, sempre atento a questões pertinentes e urgentes.

Enfim, nem tudo são flores. Antes mesmo de ser inaugurado, o painel foi alvo de um ataque. Riscado de fora a fora, em toda a sua extensão. Rasgos, ranhuras, arranhões. Mesmo havendo seguranças, mesmo sendo um painel de 100 metros, no centro da cidade, em um lugar nobre, de grande circulação, alguns cidadãos (eram muitas as marcas), decidiram por bem que aqueles 43 negros e negras, que dedicam a sua vida à sala de aula, não mereciam aquele espaço de destaque, no coração da cidade, em um dos eventos mais importantes do Brasil (evento mais visível em termos de mídia e repercussão em escala nacional). Há uma palavra para isso: racismo.

Questão óbvia para ser colocada: se fossem 43 professores e professoras brancas, o muro teria sido atacado? O título da exposição é mesmo preciso (preciso de exato; preciso de necessário): a quem interessa a invisibilidade dessas pessoas? Estarem, ali, em imensos painéis, em belas fotografias, com um trabalho artístico como pano de fundo, dá presença física a um povo que muitos, infelizmente, querem ver nas periferias apenas – ou não querem ver em lugar nenhum que seja nobre, de destaque. Querem-nos invisíveis, verdadeiramente invisíveis.

Uma pessoa desinformada pode até achar que o painel é o único espaço em que a população negra está presente; que eles são uma espécie de porta-voz, sem voz, daquele Festival. Ledo engano, o evento apresentou, dentre muitos outros, autores como Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz (autora homenageada), Lívia Sant´Anna, Tom Farias (curador do evento), Ms Kiusam, Kalaf Epalanga, Cidinha da Silva, Paulo Lins, Valéria Lourenço, dentre muitos outros…

Enfim, talvez aqueles outros muros sejam lembrados nos vestibulares desse ano, pela importância histórica, pela relevância no mundo atual. Talvez, os vestibulares lembrem da questão dos refugiados, que escapando de suas tragédias, encontram essas barreiras em seus caminhos. Porém, gostaria que esse outro muro, feito de amor, de afeto, também estivesse nas provas, sendo mostrado para milhares de jovens, que há outros muros no mundo, feitos de esperança, sem que os muros feitos de dor, de sofrimento, sejam esquecidos.

Não posso prometer nada para os meus alunos sobre o que vai cair na prova ou ser tema das redações, pois o módulo Mãe Dinah nem sempre funciona. Na dúvida, estudem Milton Santos e deem uma atenção especial à climatologia e à urbanização, isso nunca deixa de ser assunto nessas provas.

Então, quando me perguntam o que há de se estudar, além do que há nos livros didáticos, respondo assim: que estudem todos os muros, os visíveis e os invisíveis, que se comovam e se indignem com suas histórias, ao ponto de saberem quais muros devem ser derrubados e quais muros devem ser celebrados.

Exposição "Muros Invisíveis", do 11º Fliaraxá (Foto de Crys Jardim)
Exposição “Muros Invisíveis”, do 11.º Fliaraxá (Foto de Crys Jardim)

A curadoria da mostra é de Marisa Rufino e Carlos Vinícius Santos, e os registros são do fotógrafo Gabriel Andrade de Paula. O artista visual Matheus Black fez intervenções no painel. Junto ao grupo, está também Flavio Victor Silva dos Santos, estudante, aprendiz de fotógrafo e artista.

O 11.º Fliaraxá foi apresentado pela CBMM, com patrocínio do Itaú e da Cemig, via Lei Federal de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, com apoio da TV Integração, Prefeitura Municipal de Araxá, Fundação Calmon Barreto, Câmara Municipal de Araxá, Academia Araxaense de Letras, Condor Eventos, Vale Sul/Goethe-Institut, Instituto Terra e Sesc.

Serviço:

11.º Festival Literário de Araxá – Fliaraxá

Informações:

@‌fliaraxa – www.fliaraxa.com.br

Informações para a Imprensa:

E-mail: imprensa@fliaraxa.com.br

31 9 9204-6367 – Jozane Faleiro