
Mauro Werkema
Jornalista
Desconhecido do grande público brasileiro, o araxaense Calmon Barreto (1909/1994), por seu múltiplo talento e vasta produção artística, possuidor de uma rara e dinâmica dimensão criativa, deveria encontrar-se na galeria dos grandes artistas do País. Uma visita ao Museu Calmon Barreto, criado em 1996 pelo prefeito Jeová Moreira, no centro da cidade, propicia ao olhar interessado e sensível uma singular fruição estética ao contemplar algumas obras excepcionais. E permite, sobretudo, avaliar a qualidade, a singularidade e a amplitude do talento de Calmon Barreto e sua refinada formação, sensibilidade e fertilidade criativa, a ponto de surpreender-se o visitante por não encontrar o artista nos grandes catálogos das Artes Plásticas brasileiras ou por não ter oportunidade de ver um seu trabalho nos grandes salões e mostras.
Talento precoce, já aos 12 anos, em 1922, Calmon Barreto começou como aprendiz de gravador na Casa da Moeda, no Rio. Teve como professores os grandes mestres da escola. Dois anos depois, por concurso, matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes, obtendo o título de mestre-gravador. Em 1930, ganha prêmio de viagem à Europa, onde permanece por dois anos, percorrendo museus, galerias e ateliês da Itália e da França e de mais uma dezena se países. Interessou-se especialmente pelo desenho, que seria sua arte maior. Retornando ao Brasil, reingressa na Casa da Moeda e, em 1942, inicia sua atuação no magistério na Escola Nacional de Belas Artes, onde obteve, por concurso, em 1951, a cátedra de Anatomia e Modelo Vivo da Escola Nacional de Belas Artes. Aposentou-se como diretor da Escola, já com o título de doutor.
Dedicado, por toda a sua vida, à atividade artística, Calmon foi um criador múltiplo, em diversas linguagens: desenhista, ilustrador e caricaturista, entalhador, gravador, fundidor, escultor, pintor, poeta e literato, áreas em que deixou criações de alta qualidade técnica e artística, com a vastidão e a prodigalidade que nos lembram o patrono das Artes Plásticas Brasileira, o nosso Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738/1814), artista maior de Vila Rica, e que foi arquiteto, autor dos famosos riscos de São Francisco de Ouro Preto e São João del-Rei, como também, escultor, entalhador e ornamentista, com vasta obra na madeira e na pedra.
Nas suas telas, clássicas, figurativas, com estilo próprio, quase sempre épicas, históricas e realistas no plano da cultura e da formação regionais, expostas no Museu de Araxá, destacam-se “A evolução do homem”, “O Bandeirante”, “a chegada dos tropeiros” e, por sua enorme divulgação, “Dona Beija”, entre muitos outros trabalhos de elevada expressão e qualidade, . Demonstram a requintada formação, o domínio de cores e luzes, a harmonia e o equilíbrio espaciais, tendo na expressão anatômica o traço marcante e distintivo. Retratou as lutas e os tipos humanos da ocupação primitiva do Triângulo, o Sertão da Farinha Podre, o início do São Domingos do Araxá, do Desemboque, do Quilombo do Ambrósio. Sua pintura de animais, sobretudo cavalos, é excepcional. Sua pintura está além do acadêmico. Antes, filia-se aos grandes mestres florentinos, do Renascimento Italiano pelo rigor dos traços e reproduções. Mas rompe com o academicismo em vários momentos, sobretudo pela prevalência do desenho na forma clássica, especialmente na escultura.
Na Casa da Moeda, seu trabalho foi fecundo. É autor de moedas que circularam por todo o Brasil. Como também na ilustração, nos cartuns, retratos, perfis, vinhetas e nos desenhos realizados para jornais e revistas do Rio. Rigoroso na forma, sensível na expressão plástica, é um precursor da história em quadrinhos. Sua boa formação técnica permitiu seu trabalho com o bico-de-pena e o lápis, carvão ou pincel seco. Variou do óleo à aquarela. Na escultura, deixou obras em várias instituições, inclusive bustos e baixos-relevos, túmulos, portadas, monumentos urbanos. No Rio, são destaques as intervenções no “Monumento da Laguna e Dourados”, lembrança da Retirada da Laguna, na Guerra do Paraguai. Um cristo, no Museu em Araxá, é obra prima como também o relevo “Batalha dos Guararapes”, obras premiadas. E também “O garimpeiro”, “O laçador”. Trabalhos na pedra dura.
Já em Araxá, para onde retorna em 1968, trabalha ininterruptamente em seu ateliê, com sua irmã e também artista Cordélia. E, em nova manifestação do talento, revela pendor literário. Parcela de seus contos e poesias está em dois livros, “Araticum” e “Banco de ripas”, onde mostra o talento de narrador, analista da alma mineira, do folclore regional, do homem simples e sua visão da vida e do mundo, ao estilo roseano.
Calmon Barreto é um dos grandes artistas brasileiros que ainda aguarda reconhecimento nacional. No seu centenário, em 2009, a Fundação Calmon Barreto, da Prefeitura, publica exegese que faz justiça à sua vida e obra, inseparáveis. O Governo do Estado cria a Medalha Calmon Barreto, entregue anualmente, Sem vaidade, praticante da vida recolhida e até avesso a homenagens e aparições, sem ganância comercial, embora sempre estudioso e irriquieto, manteve-se fiel à orientação da Escola Nacional de Belas Artes, de um clássico academicismo romântico, sem aderir ao movimento modernista que encantou seus contemporâneos, como Portinari, seu contemporâneo e colega na Escola, Calmon Barreto é um patrimônio singular das artes visuais.
A leitura da obra de Calmon Barreto suscita naturalmente a discussão crítica atual relativa à crise de talentos e, por consequência, de “certa desvalorização e descaracterização da arte” de que tanto nos fala Ferreira Gullar e outros. Os descaminhos da arte conceitual, das intervenções e objetos, da “arte sem arte”, encontram em Calmon Barreto um exemplo diferencial além da época e do estilo. Sensibilidade, criatividade, observação emotiva, o talento de perceber e reproduzir formas, em movimentos, em jogos lúdicos, com equilíbrio de luz e cores, que encontramos em Calmon Barreto, configuram o artista excepcional que merece reconhecimento maior.