por Gabriel Pinheiro 

Homenageados desta edição do Fliaraxá, Scholastique Mukasonga e Itamar Vieira Junior se encontraram para uma conversa emocionante com o público

A noite desta quinta-feira de 13.º Fliaraxá – Festival Literário Internacional de Araxá reservou um encontro importante para o público do festival. O palco do Teatro CBMM recebeu os dois homenageados desta edição, a escritora ruandense Scholastique Mukasonga e o escritor Itamar Vieira Junior. O curador do festival, Jeferson Tenório, foi o mediador desta conversa que foi aberta de maneira emocionante por uma leitura do ator Odilon Esteves das primeiras páginas do romance “Baratas”, de autoria de Mukasonga.

“Todas as noites meu sono é abalado pelo mesmo pesadelo. Sou perseguida, escuto uma espécie de zumbido que vem em minha direção, um barulho cada vez mais ameaçador. Não me viro. Não vale a pena. Sei quem me persegue… Sei que eles têm facões. Não sei como, sem me virar, sei que eles têm facões… Às vezes, também, aparecem minhas colegas de classe. Escuto seus gritos quando elas caem. Quando elas.. Agora, estou correndo sozinha, sei que vou cair, que vão me pisotear, não quero sentir o frio da lâmina sobre o meu pescoço, eu…”

O mediador Jeferson Tenório abriu a conversa refletindo sobre como transformar em literatura coisas tão graves, tão dolorosas, tão violentas. “No caso de Scholastique, falamos do genócidio do povo Tutsi. Já do Itamar, estamos falando da herança da escravidão. Como lidar com a violência, com essas dores e transformá-las em literatura?”. Ele, então, direcionou a pergunta para Scholastique: “Como é transformar essas dores em literatura?”

Scholastique Mukasonga abriu sua fala celebrando sua vinda ao Fliaraxá: “Eu vou falar com o meu coração, não vou buscar um discurso de escritora: Aqui eu me sinto em casa, como se eu estivesse em Ruanda. Me sinto adotada por meus irmãos e irmãs brasileiros”. Na sequência, a homenageada disse nunca ter pensado sobre o gesto de transformar dor em literatura. “O destino quis que eu me tornasse escritora e hoje isso é a minha vida”. Ela, então, compartilhou com o público a trágica experiência do genocídio em Ruanda, do qual ela é uma sobrevivente. “Acabei cumprindo a missão que meus pais escolheram pra mim de relatar isso. (…) Em Ruanda a tradição era contar histórias oralmente. Um sobrevivente perde a palavra: depois do genocídio, eu percebi que escrever livros era a melhor maneira de falar sobre isso”.

Itamar Vieira Junior comentou que a escrita o permite refletir de uma maneira mais elaborada sobre aquilo que o inquieta, sobre aquilo o que o incomoda. “A dor faz parte dessa dimensão subjetiva do ser humano. Não há nada de sagrado ou de maravilhoso na dor, ela não nos engrandece. Mas escrever sobre isso me faz refletir de uma maneira mais ampla sobre a nossa realidade”. O escritor, então, compartilhou com o público sua experiência enquanto geógrafo, de seu trabalho em campo em comunidades do interior do Brasil. “Se algo me incomoda, eu preciso refletir sobre aquilo. É muito provável que, para refletir, eu precise escrever, eu preciso recriar esse mundo. (…) Pensar que essa experiência humana é compartilhada em muitos lugares. Não é confortável escrever sobre a dor. Mas quando eu comecei a escrever, eu não imaginei e nem queria que fosse fácil. Essas histórias guardam um significado importante pra mim.”

Jeferson leu um trecho do livro “A mulher de pés descalços”, de Scholastique Mukasonga, relacionando-o ao segundo romance de Itamar Vieira Junior, “Salvar o fogo”. “Qual a importância de trazer a visão das mulheres na perspectiva da violência civil, do genocídio?”, ele perguntou para a escritora ruandesa. Mukasonga refletiu: “Eu escutei a minha mãe. Me coloquei na pele dela. Mãe é uma questão universal. Trazer o gênero para isso é escutar as mães”. A autora acrescentou: “As mulheres tinham a função de transmitir os valores fundantes da tradição. (…) As mulheres tinham que transmitir oralmente. Quando eu escrevi ‘A mulher de pés descalços’ foi para dizer da força da mulher. (…) Sempre em meus livros vai ter um lugar que designa a minha mãe. (…) Hoje quando eu volto a Ruanda 30 anos depois vejo que as mulheres têm um papel fundamental no desenvolvimento do país”.

Na sequência, Itamar Vieira Junior destacou a importância das personagens femininas em suas narrativas: “Ainda bem que a literatura é esse terreno da liberdade. (…) Pensando nos romances que eu tenho escrito e publicado, é inegável que as mulheres ocupam um lugar de destaque. Essa não é uma escolha esvaziada de sentido. Existe um olhar pro mundo à nossa volta, para o que está acontecendo”. O escritor homenageado acrescentou: “Quando eu escrevo, preciso fugir desse lugar quase sagrado que os homens ocupam. Eu queria que as personagens mulheres, por fim, pudessem contar essa história. (…) Se eu queria contar a história de uma outra perspectiva, eu precisava devolver a palavra para essas personagens que foram historicamente invisibilizadas.

Refletindo sobre sua escrita, Itamar questionou: “O que seria de nós se não houvesse a raiva daqueles que não se conformaram com o sistema de exploração? Se, por um lado, o amor é necessário, certa dose de raiva também pode significar uma emancipação”. O convidado falou sobre a escrita como recriação de mundos. “Sempre me perguntam o que é imaginação e o que é verdadeiro no que eu escrevo. É necessário que eu habite esses dois planos da minha vida.” Concluindo a sua fala, o homenageado refletiu: “A literatura, às vezes, consegue criar a sensibilidade naquele que está do outro lado para o drama humano. É o que, por exemplo, sentimos quando lemos a Scholastique.”

Encerrando a conversa, Jeferson Tenório perguntou para Scholastique sobre como é viver na França e seu histórico colonialista. Segundo ela, “a literatura me deu sentido para viver nesse lugar, ela me permitiu falar da minha dor e da minha solidão”. A autora, então, falou sobre o processo de reconstrução da Ruanda pós-genocídio. “Quem nos salvou do genocídio, fomos nós mesmos. Os belgas foram embora, as Nações Unidas foram embora. (…) [No processo de reconstrução do país] criamos um espaço para que pudéssemos ser ruandeses. Logo depois do genocídio, teve início uma tradição de escrita em Ruanda, sobretudo entre as mulheres. (…) O mais importante é que a gente conte as coisas, não esconda nada”. 

Sobre o 13.º Fliaraxá

O 13.º Fliaraxá ocorre de 1.º a 5 de outubro, no Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá. O evento acontece em mesas de conversa com escritores, lançamentos de livros, prêmio de redação, atividades para as crianças, apresentações musicais, entre outras. Todas as atividades do Festival são gratuitas.

Há 13 anos, a CBMM apresenta o Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá –, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, com a parceria da Bem Brasil e o apoio cultural do Centro Cultural Uniaraxá, da TV Integração e da Academia Araxaense de Letras.

Serviço:

13.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá

De 1.º a 5 de outubro, quarta-feira a domingo

Local: programação presencial no Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá (Av. Ministro Olavo Drummond, 15 – São Geraldo), e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @‌fliaraxa

Entrada gratuita