Veja – 25/10/25 – Matheus Leitão

 

Fliaraxá 2025: quando a literatura se ergue frente à urgência

 

A paisagem literária de Minas, em Araxá, voltou a abrigar encontro, memória e resistência.

 

https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/fliaraxa-2025-quando-a-literatura-se-ergue-frente-a-urgencia/

 

 

Na 13ª edição do Fliaraxá, sob o tema “Literatura, Encruzilhada e Memória”, o que se viu, além de um festival, foi a reafirmação de que a palavra pode reorganizar o mundo. A cidade-serra transformou-se, por cinco dias, num laboratório, onde escritores, leitores, jornalistas e pensadores se debruçaram a olhar o que nos fragmenta, mas também o que nos une, tendo por lentes os livros.

 

Entre tantas mesas, lançamentos e conversas, duas se impuseram pela força e alcance: “Reconstruir um país, reconstruir a solidariedade” e “Justiça: literatura contra o silêncio”. Na primeira, a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga — homenageada internacional do festival — deu à plateia um testemunho de quem sobreviveu ao horror. Sua fala, atravessada por lembranças dos antecedentes do genocídio de Ruanda e pelo exílio forçado, deu sentido à escrita como cura e denúncia. “Escrevo para me esvaziar dos horrores”, afirmou. O mediador Sérgio Abranches definiu o Fliaraxá como uma “micro-utopia”: um espaço onde a diferença não é disfarçada, mas celebrada. E Jamil Chade, com a contundência de quem conhece os bastidores do mundo, lembrou que 1% da população concentra 95% da riqueza global — um número que revela o abismo que a literatura tenta atravessar quando trata de solidariedade. Reconstruir o país, sugeriram as falas, não é tarefa de políticas públicas apenas, mas de um pacto ético e coletivo. A solidariedade, mais do que um valor, é um verbo.

 

Da mesa “Justiça: literatura contra o silêncio”, mediada também por Jamil Chade, tive a honra de participar ao lado de Cecília Oliveira e Lívia Sant’Anna Vaz. E ali, diante de uma plateia atenta, o debate ganhou contornos locais. Lembrei — e repito aqui — que a tortura no Brasil não começou na ditadura militar; nasceu com a escravidão, com o “descobrimento”, com o massacre de povos originários e com a naturalização da brutalidade. Cecília, com a precisão de quem investiga a violência todos os dias, lembrou que as milícias não são aberrações do sistema, mas parte dele — formadas, armadas e protegidas por estruturas estatais que preferem a omissão ao enfrentamento. Sua fala expôs o que o país ainda reluta em admitir: a violência não é acidente, é projeto. Diante dessas vozes, o silêncio nacional grita.

 

Outra mesa que adensou o festival foi “Ficção, passado e futuro”, com Ale Santos, Vinícius Neves Mariano e Sérgio Abranches, sob a mediação de Bianca Santana. A conversa cruzou o tempo — do Brasil colonial às ficções especulativas — e mostrou como imaginar é também um ato político. Ale e Vinícius trataram a ficção como ferramenta de reconstrução simbólica, um modo de reescrever o que nos foi negado. Abranches costurou o presente às projeções do futuro com a serenidade de quem enxerga a literatura como bússola moral num mundo em desordem. Foi uma mesa que lembrou o público de que pensar o país também passa por inventá-lo novamente.

 

Nada disso seria possível sem a competência e a sensibilidade da curadoria de Afonso Borges, Bianca Santana, Jeferson Tenório e Sérgio Abranches — quarteto que osquestrou o encontro de perspectivas, em um mosaico de ideias e emoções.

 

O Fliaraxá vai além das mesas e dos holofotes. Nos corredores do Centro Cultural Uniaraxá, nas oficinas, nos prêmios de redação, na Maratona “Seja Breve”, nas leituras de crianças e jovens, o festival consolidou sua vocação de transformar literatura em encontro. A programação gratuita fez da cidade um espaço de travessia para quem, em tempos de desânimo, ainda acredita no poder da palavra. A literatura ali não estava confinada em livros fechados — circulava viva, presente, respirando com a cidade.

 

Araxá mostra como a literatua continua sendo um dos poucos espaços onde o país ainda se reconhece — e talvez se reconcilie. Ela segue como território de reflexão e de coragem, onde escrever é também resistir. As mesas centrais foram espelhos de um país inteiro. Falavam de solidariedade, justiça e memória — temas que nos assombram porque ainda não os resolvemos. O Fliaraxá lembrou que a literatura é barômetro e alavanca: mede o tempo em que vivemos e empurra o que ainda podemos ser.

 

Se o país precisa se reconstruir, que comece pela palavra. Porque, quando a literatura se levanta — sem pedir licença, sem medo do desconforto —, o silenciamento não permanece.