Tatiana Salem Levy, Bianca Santana, Natália Timerman e Jeferson Tenório discutem escrita, espiritualidade e verdade no encerramento do dia do Fliaraxá

“A literatura vale tanto assim?” A pergunta feita por Bianca Sant’ana, retirada de um livro de Natália Timerman, abriu a mesa da noite e ecoou no auditório do 13.º Festival Literário Internacional de Araxá. Para a autora, a dúvida permanece cotidiana. “Acho que não vale, mas a gente continua escrevendo. Acho que os conceitos que definem a literatura são fixos, assim como a nossa postura diante dela. Nesse momento, estou com um livro que está sendo muito difícil. Digo todos os dias que não vale a pena, mas não consigo não fazer”, contou entre risos.

Tatiana Salem Levy refletiu sobre a inevitabilidade da escrita ao afirmar que “todo mundo sofre e todo mundo é feliz” e que cada pessoa cria narrativas para as próprias dores e alegrias. “Acho que há um amadurecimento dentro da escrita”, disse, lembrando que, no início da carreira, pensava que precisaria viver tragédias para se tornar escritora. Já Jeferson Tenório destacou como sentimentos de rancor, mágoa e melancolia, misturados à raiva, podem ser motores criativos.

A conversa avançou com a leitura de Bianca Sant’ana de obras dos autores e perguntas que saltaram das obras e conduziram a mesa. Em um desses trechos, o livro “Melhor não contar”, de Tatiana, lançou a pergunta se “a escrita cura?” Tenório respondeu com outra indagação: “Cura o quê?  Na opinião dele, a literatura não tem esse poder no sentido patológico. “Ela te ajuda a conviver com aquilo que você já teve.” Natália, por sua vez, concordou e reforçou que a escrita não elimina feridas. “Os autores rondam os mesmos livros, trazendo questões que sempre voltam. A literatura organiza, nomeia, fixa o que antes poderia tomar muitas formas. Mas existem dores que a gente não quer curar, como diz Freud.” Em sintonia com a fala de Jefferson Tenório, Tatiana completou lembrando que, ao longo do tempo, percebeu que alguns temas inevitavelmente retornam aos seus livros, como a violência contra a mulher e a morte da mãe. 

A espiritualidade também entrou em pauta. Nesta sexta-feira (3/10), dia dedicado a Oxalá para pessoas de matriz africana, Bianca fez um paralelo entre espiritualidade, memória e ficção em busca de entender com esses caminhos se encontram nas encruzilhadas de escritas dos autores presentes na mesa. Para Tatiana, que se nomeia como uma adepta do judaísmo cultural, a presença na escrita ocorre — mesmo sem vínculo religioso formal. “No caso do judaísmo, vejo como uma herança que passa de geração em geração. O meu primeiro romance fala da minha família expulsa de Portugal, que foi para a Turquia e depois para o Brasil. Muitas famílias sofreram com isso e guardam até hoje a chave, como uma simbologia da esperança de voltar para a casa.” Ao relacionar memória e política, ela ergueu a voz para denunciar os ataques a Gaza: “Como o Estado de Israel comete esse genocídio? Como os netos de um genocídio podem cometer outro em tão pouco tempo?” O auditório reagiu com aplausos ao grito de “Palestina livre”.

Tenório contextualizou o uso das vestimentas e para o debate sobre a espiritualidade afro-brasileira. Apesar de frequentar terreiros de umbanda e candomblé, pra ele, vestir branco às sextas-feiras é mais do que um gesto religioso: é uma postura política. “A memória se fixa porque coisas acontecem com o nosso corpo e são registradas por ele. A memória vem antes do presente, e o que mais fazemos é conviver com o passado.” 

Natália dialogou com a fala de Tatiana e questionou sua própria relação com o judaísmo. “É claro que não somos responsáveis pelo que o Estado de Israel faz, mas isso causa dor aos palestinos e também aos judeus da diáspora. Por muito tempo, eu disse que não era judia, até perceber que isso estava na minha escrita e na minha identidade. Minha maior experiência religiosa é com a literatura, uma religação para entender o que vem antes e o que vem depois.”

Ao encerrar a mesa, Bianca provocou os autores com uma última pergunta: o que é verdade na literatura? Tatiana respondeu que a verdade não está ligada a fatos objetivos. “A gente sempre sabe quando a escrita é verdadeira.” Natália reforçou que a ficção não é mentira e isso não pode ser esquecido. “A ficção é uma maneira de chegarmos a lugares onde não chegaríamos de outro modo.”

Tenório recorreu a Nietzsche para lembrar que a verdade é uma construção narrativa. “Na literatura, fazemos um pacto estético com o leitor. É nesse processo de exaustão, em que você escreve até ser derrotado pela própria literatura, que se alcança uma verdade estética. E é atrás dela que a gente sempre busca.”

A mesa terminou com a leitura de trechos pelos autores, num encerramento marcado por reflexões intensas sobre memória, espiritualidade, verdade e o papel da literatura na vida de quem escreve e de quem lê.