
Por Fernanda Martins
Autores mostraram que escrever é costurar memórias inventadas, vividas e compartilhadas
O início da noite de hoje (2/10) no 13.º Fliaraxá trouxe a escritora Myriam Scotti, que abriu a mesa citando Adélia Prado e a ideia de que “nasce com mil anos a memória”. A provocação deu o tom da mesa, que contou com os autores Juliana Monteiro, Ricardo Ramos Filho e Lívia Sant’Anna Vaz. A conversa, mediada por Myriam, trouxe para o centro da discussão o tema “Entre invenção e lembrança” e como a memória pessoal e coletiva atravessam a escrita literária.
Para Juliana Monteiro, tudo o que chamamos de vida é memória. “A memória é pessoal e cada pessoa vai se lembrar de uma cena. Na literatura, a gente acessa memórias inventadas, intuídas e contadas. Quando escrevemos ficção, a forma como preenchemos o que não lembramos é arte”, acredita. Nesse limbo entre invenção e lembrança, a autora contou parte do processo de escrita na pandemia, em que buscou marcar aquele tempo histórico de caos. Para ela, até um livro de memórias precisa ter uma boa dose de ficção.
Ricardo Ramos Filho destacou que, em sua trajetória, muitos leitores querem transformar sua ficção em memória, como ocorre em A Poeira na Calçada. “O protagonista é Rodrigo, mas insistem em dizer que sou eu. Isso sempre aconteceu. Quando escrevemos, não conseguimos separar totalmente o que é ficção do que é realidade. Muitas vezes, aquilo se transforma em memória, mesmo que não queiramos. Não conseguimos escrever sem nos colocar no texto”, explicou.
Lívia Sant’Anna Vaz, que transita em universos de ficção e não-ficção, lembrou Manoel de Barros para resumir o tema: “Noventa por cento do que escrevo é memória, e apenas dez por cento é ficção”. Sobre o trânsito da escrita, Lívia explica que o grande desafio é, por exemplo, transformar a literatura de terreiro em teoria. Myriam movimentou a mesa e os autores ao perguntar se a memória poderia ser uma fuga.
Juliana respondeu que não se preocupa com fidedignidade, mas com imaginação. Ricardo destacou sua relação com a crônica, gênero que se alimenta das andanças e observações cotidianas. Já Lívia contou que escreve em diferentes frentes e, no momento, trabalha em um romance sobre sua avó, entrelaçando a história da família e de Salvador. “Cada pessoa tem uma perspectiva de memória, e é isso que nos ajuda a criar”, afirmou.
Na integralidade de todo esse processo, Ricardo afirmou que não há como escrever sem política. “Não tem como falar da pandemia sem lembrar das 700 mil pessoas mortas por um governo que negou a vacina. O texto é político. Essa raiva aparece no que escrevo. Aprendi isso com um membro da família que veio antes. Você não lê ‘São Bernardo’ sem enxergar o fazendeiro déspota, nem ‘Vidas Secas’ sem ver a tragédia dos retirantes. A política estava na obra dele e aprendi isso muito cedo”, falou sobre as obras de Graciliano, que é avô de Ricardo, e se tornou uma referência pelo endossamento político presente nas obras.
Para Juliana a simples ação de uma mulher escrever já é um gesto político. “Mulheres sempre escreveram, mas em caderninhos que não tinham chance de virar livros. Hoje vemos cada vez mais mulheres publicando e recebendo prêmios. Isso é a beleza do nosso tempo.”
A mesa terminou com um presente ao público: o canto de Lívia Sant’Anna, que ecoou a frase que sintetizou o encontro. “Nós somos porque fomos. Eu sou porque nós somos. E assim resistiremos.”
Sobre o 13.º Fliaraxá
O 13.º Fliaraxá ocorre de 1.º a 5 de outubro, no Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá. O evento acontece em mesas de conversa com escritores, lançamentos de livros, prêmio de redação, atividades para as crianças, apresentações musicais, entre outras. Todas as atividades do Festival são gratuitas.
Há 13 anos, a CBMM apresenta o Festival Literário Internacional de Araxá Fliaraxá, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, com a parceria da Bem Brasil e o apoio cultural do Centro Cultural Uniaraxá, da TV Integração e da Academia Araxaense de Letras.
Serviço:
13.º Festival Literário Internacional de Araxá Fliaraxá
De 1.º a 5 de outubro, quarta-feira a domingo
Local: programação presencial no Teatro CBMM do Centro Cultural Uniaraxá (Av. Ministro Olavo Drummond, 15 – São Geraldo), e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook @fliaraxa
Entrada gratuita