Por Márcia Maria Cruz

No encerramento da primeira noite do Festival, as escritoras abordaram como o tema escravidão aparece em seus romances

“O que ficou para trás. Um monte de coisa. Não sabia absolutamente nada sobre mim. Não sabia absolutamente nada sobre o meu país, eu desconfiava das coisas. Sabia que as histórias não eram aquelas” – Eliana Alves Cruz

 

“Viemos da África. Na Inglaterra, desde 2012, estão decodificando os genomas fósseis. Lá foi descoberto uma necrópole do período neolítico e analisando os genomas descobriram que são todos negros. A origem de toda a europa, dos Franceses, ingleses, é negra” – Hannelore Cayre

As escritoras Hannelore Cayre e Eliana Alves Cruz se encontraram na mesa de encerramento do primeiro dia do Festival Literário Internacional de Araxá (Fliaraxá), nesta quarta-feira (19) na Fundação Calmon Barreto. As duas abordaram o romance policial, mas, conforme Afonso Borges adiantou, estavam reservadas para a noite outras confluências entre elas: como a vivência familiar no campo jurídico inspira suas obras. Hannelore é advogada criminalista e Eliana vem de uma família de pessoas formadas em direito, a irmã Adriana Cruz, inclusive, é  juíza criminal.

Outra aproximação revelada é como o tema escravidão é pano de fundo de romances escritos por elas. “É divertido fazer um festival sem tema pré-definido, vamos descobrindo as surpresas que esses encontros proporcionam”, brincou o curador. Afonso destacou ainda como os romances de Eliana Alves Cruz revelam  histórias pouco contadas na literatura brasileira.

O interesse em saber qual era a origem de sua família foi o ponto de partida para a literatura de Eliana. “O que ficou para trás. Um monte de coisa. Não sabia absolutamente nada sobre mim. Não sabia absolutamente nada sobre o meu país, eu desconfiava das coisas. Sabia que as histórias não eram aquelas”. Outra constatação foi perceber que sua família, como outras famílias negras, não era retratada na literatura nem no audiovisual. Essas lacunas a levaram a uma investigação sobre ela própria. “Busquei entender de onde vim, fui pesquisar. Pesquisar sobre minha própria família”, contou. 

O processo de investigação levou cerca de seis anos e culminou no romance “Água de barrela”, a história ficcionalizada do clã de Eliana,  de 1850 até os dias atuais. A partir dessa pesquisa, o projeto literário da escritora se desenhou. “Nasceu um projeto literário que tenta investigar o que é ser negro no Brasil, o que é ser negro no mundo, o que é ser brasileira. Se isso faz sentido ou não… essas fronteiras”. 

O projeto literário de Eliana, conforme destacou, não pretende representar uma nação. Recorre à Grada Kilomba para definir sua escrita, que propõe questionar o que é uma nação, um país. A escrita dela como mulher negra é um ângulo ainda pouco comum na literatura brasileira, conforme Afonso pontuou. “É uma escrita muito inusitada para muita gente. São histórias de um ponto de vista, muito pouco visto”, disse Eliana.

Hannelore também resgatou a história pessoal para entender como a literatura entra em sua trajetória. “É muito fascinante ver a minha colega falar de origem, mas muitas pessoas não têm origem. Eu sou parte das que não têm”. Ela não é francesa e vem de uma família apátrida. A mãe fazia parte de um povo que não existe mais, ciganos da do Leste da Europa. “Ela é judia da Áustria e da comunidade de onde ela veio não existe nenhum só. Foram todos exterminados pela Segunda Guerra.” O pai é de uma colônia francesa, a Argélia, e por ter sido parte da Coluna de Paris  e com fim depois da revolução comunista teve a nacionalidade retirada. “Meus pais não tinham absolutamente nada. Não tinham nacionalidade, não eram nada, não tinham nada e se reuniram com pessoas que não eram nada e que não tinham nada.” 

Hannelore contou um pouco de como nasceu o best-seller premiado “A patroa”, que conta a história de Patience Portefeux, uma especialista em língua árabe que trabalha como tradutora para a justiça francesa. A escritora mostrou a importância de uma tradutora judicial na França, um país formado por imigrantes, mas muito racista. A inspiração para a construção dessa narradora-personagem veio do trabalho de Hannelore na área criminalista, já que ela tem um escritório de advocacia criminal com o marido.

“A patroa” narra a trajetória de uma mulher de 50 anos, de vida comum, exausta por ter que cuidar dos pais e dos filhos, e que atuava como tradutora penal. Patience se vale do trabalho de tradutora para tirar proveito do desvio de uma tonelada de maconha. Muitas leitoras se reconhecem nessa mulher esmagada, cansada e dizem que, no lugar dela, fariam o mesmo.“É um livro imoral e que vendeu muito bem na Europa. Nenhuma pessoa me disse que o livro é imoral”. 

A escravidão também foi um tema abordado pelas duas escritoras. Eliana Alves Cruz escreve o romance policial  “O crime do Cais do Valongo”, que conta o  assassinato do comerciante Bernardo Lourenço Viana. A partir desse episódio ela conta a história do Cais, que foi a principal porta de entrada de pessoas escravizadas no Brasil, mais de 1 milhão de pessoas.

Hannelore lembrou que na França todo mundo vem de uma família que já comprou outra pessoa ou de uma família de pessoas que foram compradas. No entanto, é uma memória colocada embaixo do tapete. Para escrever o seu penúltimo livro, “Richesse oblige”, ela fez uma pesquisa sobre as empresas de seguro e descobriu que muitas delas iniciaram as atividades no período da escravidão, período em que os comerciantes de pessoas se asseguravam das mortes no mar. No mais recente livro,  o romance noir pré-histórico “Les Doigts coupés”, que se passa há 35 mil anos, investiga a origem da humanidade. “Viemos da África. Na Inglaterra, desde 2012, estão decodificando os genomas fósseis. Lá foi descoberto uma necrópole do período neolítico e analisando os genomas descobriram que são todos negros. A origem de toda a Europa, dos franceses, ingleses, é negra.”