
“Em 2020, pensei: o que estou fazendo? Que padrões são esses? O que quero provar? Para quem? Inclusive padrões os quais desprezo. O ‘Cartas para minha avó’ se impôs naquele momento para mim. Veio nesse lugar de reconexão com o meu feminino. De olhar para a história da minha mãe, de olhar para a história da minha avó” – Djamila Ribeiro.
“É uma forma de a gente costurar esse tecido tão cerzido, esse tecido furado que é a nossa história coletiva. A gente tem uma história coletiva que é escrita por mim, pela Djamila, pela Teresa Cárdenas, por Volp, pela Maya Angelou, pela Toni Morrison, pela Conceição Evaristo, pela Cidinha da Silva, pelo Tom Farias, por Jeferson Tenório. A gente tem um mosaico que a gente escreve” – Eliana Alves Cruz.
Por Márcia Maria Cruz
A cidade de Araxá testemunhou o encontro histórico entre Tom Farias, Djamila Ribeiro e Eliana Alves Cruz, na mesa de encerramento do terceiro dia do Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá –, na sexta (21/6), na Fundação Calmon Barreto. Memória, o respeito à ancestralidade, a reconstrução de uma história pessoal, que também é coletiva dos negros no Brasil, foram temas abordados na primeira vez em que os autores de “Cartas para minha avó”, “Água de barrela” e “Toda fúria” se encontraram em um evento literário.
Tom destacou o movimento de busca por uma história pessoal e coletiva, que implica conexões, o que ele denominou de “colar os pedacinhos que há mais de 400 anos tentaram quebrar e fragmentar”. “É importante numa cidade do Triângulo Mineiro, como Araxá, a gente falar de memória. Na pauta, a ancestralidade, e como isso conecta tudo que a gente faz”, afirmou.
Em “Cartas para minha avó”, Djamila exercita uma escrita diferente da acadêmica, que a projetou como uma escritora de não ficção. Em 2020, Djamila entrou em um espiral de produtividade e questionou o que estava fazendo. O livro veio com a possibilidade de uma pausa e se impôs. “É um livro que quebra um pouco a ordem dos meus livros, sou uma autora de não ficção. Autora que escreve ensaios, que escreve produções e críticas. O ‘Cartas para minha avó’ vem para quebrar tudo isso, em um momento que estava com 40 anos e que comecei a reavaliar minha própria vida.”
Djamila estava em um movimento de muita produção, até como resposta às cobranças que recebeu na universidade. “Certo dia, sentei e escrevi 32 páginas do ‘Cartas para minha avó’. É um livro que se impôs a mim de certa maneira.” Ela o define como o “livro das águas” do momento de desaguar. Djamila compartilha um pouco da relação com a mãe, a relação com a avó e com a filha. “Essa reconexão com a ancestralidade feminina foi lugar de muita cura. Foi um livro muito doloroso de escrever. Foi muito difícil escrever esse livro. Tive que elaborar muitas dores, que achei que tinha elaborado. Tive que me afastar dele. Entreguei muito depois do prazo, ele me causou muita dor. Mas, ao mesmo tempo, é o meu livro que me deu mais prazer de ter escrito.”
Avó Antônia foi para Djamila o lugar de aconchego e de afeto. “Lugar de uma menina negra de Santos que quando ia para a casa da avó em Piracicaba podia ser só criança. Na minha realidade, eu tinha sempre que estar na defensiva. Responder à violência racista na escola, responder ao preconceito contra as religiões de matriz africana. Fui iniciada aos 8 anos de idade.” Em Piracicaba, ela podia ser a neta da Dona Antônia, comer doce de abóbora, empinar pipa e ser benzida nos dias que ela atendia à comunidade.
Tom Faria destacou que “Água de barrela” conjuga memória e ficção, a partir de uma pesquisa da realidade. É uma busca pela história familiar, mas que revela muito da trajetória das pessoas negras no Brasil. Ao ser questinada sobre essa busca para a escrita do livro, Eliana destacou que o momento que estavam vivendo – uma mesa formada por três escritores negros – é parte de um novo tempo que está sendo inaugurado no Brasil.
A possibilidade de autores e autoras negras publicarem, fazerem sucesso, tornarem-se nomes de festivais literários, conforme pontuou Eliana, resulta de uma caminhada de muitos que vieram antes. “É a prova de que as caminhadas valem a pena, de que as lutas valem a pena. Hoje, 21 de junho, é aniversário de Luís Gama, foi um cara que libertou 500 pessoas, mas não viu a abolição. Então, a gente precisa se permitir sonhar, precisa se permitir fabular um outro tempo.”
Eliana conviveu com avós e bisavós, já que sua família é de pessoas longevas. A exceção, no entanto, foi a própria mãe, que morreu muito jovem, vítima de um “infarto fulminante”. “Escrevo com a certeza que estou contando uma história que ela não teve tempo de contar”, disse.
Eliana volta ao passado para fazer uma fabulação crítica. “É uma forma de a gente costurar esse tecido tão cerzido, esse tecido furado que é a nossa história coletiva. A gente tem uma história coletiva que é escrita por mim, pela Djamila, pela Teresa Cárdenas, por Volp, pela Maya Angelou, pela Toni Morrison, pela Conceição Evaristo, pela Cidinha da Silva, pelo Tom Farias, por Jeferson Tenório. A gente tem um mosaico que a gente escreve.”
Eliana retomou frase de Teresa Cárdenas, dita no Fliaraxá na noite anterior, para falar desse movimento de escritores negros: “São todas histórias escritas por uma mesma mão”. Eliana contou um pouco de como foi a pesquisa para a escrita de “Água de barrela”, que a levou ao Recôncavo Baiano em busca da história de sua família.
Em depoimentos muito sensíveis, Djamila e Eliana falaram das respectivas famílias, da relação com a filha, com os tios, e a maneira como as famílias recebem a obra delas. “É muito bonito como eles leem o livro. A conexão vem pelo afeto. Não vou ser a pessoa que chega no evento de família e fica dando palestrinha, detesto”, diz Djamila. Depois da publicação do “Cartas para minha avó”, ela se reconectou à família.
Para encerrar, Eliana falou do seu próximo livro, “Meridiana”, que já está no prelo. “‘Meridiana’ é um livro que fala de metades. Nós mulheres de um modo geral somos aquelas que ficam no meio, mediando coisas. A gente abandona parte da nossa vida, reduz a nossa caminhada para resolver problemas de várias pessoas. A gente se abandona.”
Sobre o Fliaraxá
A CBMM apresenta, há 12 anos, o Festival Literário Internacional de Araxá, um festival literário com atividades acessíveis, inclusivas, antirracistas, éticas, educativas e em equilíbrio com a diversidade, economia criativa, raça, gênero e pessoas com deficiência. Toda a programação é gratuita, garantindo a democratização do acesso. O Fliaraxá tem, também, o patrocínio do Itaú, da Cemig e do Bem Brasil, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Participam, na qualidade de apoio cultural, a Prefeitura de Araxá, a Fundação Cultural Calmon Barreto, a TV Integração, a Embaixada Francesa no Brasil, o Institut Français e a Academia Araxaense de Letras. Todas as atividades do Festival são gratuitas, com a curadoria nacional de Afonso Borges, Tom Farias e Sérgio Abranches e curadoria local de Rafael Nolli, Luiz Humberto França e Carlos Vinícius Santos da Silva.
Serviço
12.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá
De 19 a 23 de junho de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Programação presencial na Fundação Cultural Calmon Barreto (Praça Artur Bernardes, 10 – Centro), e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @fliaraxa
Entrada gratuita
Informações para a imprensa: imprensa@fliaraxa.com.br
Jozane Faleiro – 31 99204-6367/ Letícia Finamore – 31 98252-2002