“O problema é a gente escrever com palavras que não são nossas. A gente fica lutando com o sistema literário o tempo inteiro para dizer as palavras que a gente tem que usar. As pessoas chegam muito reféns do sistema literário. A primeira pergunta que eu faço é: qual a palavra que só você tem” – Marcelino Freire.

 

“Sou uma mulher negra, e não quero estar separada da Márcia, que é uma mulher branca. A gente não fala de identidade racial para separar. A gente fala como possibilidade de construir um país juntas, juntos. Todo mundo que está aqui” – Bianca Santana.

Por Márcia Maria Cruz

Tom Farias recebeu Bianca Santana e Marcelino Freire para uma conversa, na noite do segundo dia do 12.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá –, na Fundação Calmon Barreto. A conversa ampliou-se quando, nas respectivas mesas, dialogaram com mulheres referenciadas em suas obras e simbolicamente as trouxeram para o palco. Os três trouxeram para o bate-papo a referência de mulheres fundamentais para a escrita de cada um deles. Apresentaram como as trajetórias delas serviam de inspiração literária.

Bianca Santana compartilhou como foi o processo de escrita da biografia “Contínuo preta: a vida de Sueli Carneiro” e também contou casos da avó Polu. Tom Farias trouxe a memória de Carolina Maria de Jesus ao revelar os bastidores da escrita de “Carolina: uma biografia”. Marcelino performou o jeito de falar, o ritmo e a sabedoria da mãe Maroca e da tia Totonha, duas mulheres que dão sentido à sua escrita. Outra mulher simbolicamente convocada à mesa foi a escritora Ana Maria Gonçalves, mineira de Ibiá, autora do  “Um defeito de cor”.

Tom Farias destacou a relação de afeto e diálogo intelectual que mantém com Bianca e a provocou a falar de como foi seu entendimento como mulher negra. Bianca leu trecho do “Quando me descobri negra”, publicado em 2015, que descreve que, na época da escrita da obra, ela tinha 30 anos de vida, mas apenas há dez havia se visto como negra. 

Por ser negra, de pele clara, ocupa um não lugar de pessoas pardas, que não têm a pele retinta o suficiente para serem consideradas pretas, mas que também não são vistas como brancas. A negação da autoafirmação racial, destacou Tom, promove um apagamento. Bianca destacou, porém, que a busca pela identidade não deve ser um processo para as pessoas se apartarem em grupos. “Só é possível que eu olhe para Márcia Tiburi e reconheça nela a mulher imensa que ela é. Porque eu sou hoje uma mulher que sabe de onde vim”, disse dialogando com Tiburi, que estava na primeira fila da plateia. Ao falar de identidade racial, o objetivo não é apartar, é o contrário: é a possibilidade de construir juntas. 

Marcelino iniciou a fala destacando o tema do 12.º Fliaraxá, sobre a diversidade em um festival literário. Indicou o livro “Chuva dourada sobre mim”, da escritora argentina Naty Menstrual, com tradução de Amara Moira e orelha de Dani Avelar. Na sequência, falou da Balada Literária, oficinas literárias que realiza desde 2006. “O problema é escrever com palavras que não são nossas.” E provocou: “Qual a palavra que só você tem? Me diz três!” “Minha avó Maroca é uma palavra que eu tenho.” Quem passou pelas oficinas certamente não se esquece de um dos exercícios: escrever dez itens de coisas que viveu na infância.

Bianca também falou do processo da escrita da biografia de Sueli Carneiro. A obra traz a trajetória de uma intelectual e ativista do movimento negro dedicada à luta pelos direitos das mulheres negras. Era o que Sueli gostaria que Bianca contasse – a história do ativismo, a história do movimento negro, a história da redemocratização –, mas a biógrafa foi além. Interessava contar outros aspectos da vida de Sueli. 

E Bianca foi atrás de passagens ainda desconhecidas até mesmo pela biografada. Investigou, por exemplo, de onde veio o sobrenome Carneiro. Para descobrir, fez toda uma pesquisa documental que a levou a outra mulher, a Maria Gaivota.  De início, Sueli não autorizou que Bianca entrevistasse a tia dela, mas com a descoberta, ela pôde entrevistar a Tia Nadir e vivenciar um dos momentos mais emocionantes ao constatar o parentesco dela com Maria Gaivota. 

Marcelino também compartilhou como é seu processo criativo. A oralidade é muito forte na literatura de Marcelino, que recita frases ditas pela mãe Maroca e pela tia Totonha. “Amanhã não amanheço vivo”, dizia a mãe toda noite na casa tomada por muriçocas. Outra frase da mãe, “acordei com uma dor”, lembra a Marcelino que tanto o nordestino quanto o mineiro tem em casa uma farmácia para todas as dores do corpo e oratório para dores da alma. O escritor fez uma revelação: “Escrevo por dois motivos: para me vingar de um amor que foi embora, não faltam motivos de vingança. Outro motivo é dar vida às pessoas que amava, tia Totonha, restaurar a fala dela”.

Ao ouvir Marcelino falar de termos usados pela mãe, como por exemplo “científico”, Bianca se lembrou de um episódio ao visitar a avó quando estava internada e perguntaram para ela se ela era a neta médica. “Vó, eu estudo ciências… ciências sociais.”

Tom Farias também compartilhou o seu fazer literário. Revelou que já havia escrito 180 páginas da biografia de Carolina quando perdeu o computador com todo o texto. Ficou desbaratado sem saber o que faria. Decidiu que iria do Rio de Janeiro para Sacramento, cidade onde Carolina nasceu. Ao revisitar os locais onde ela esteve, lhe veio uma visão de Carolina: “‘Você é um frouxo. Sente-se outra vez e escreva’. Três dias depois, voltei para o Rio de Janeiro e, em 60 dias, escrevi 460 páginas”. Para finalizar, Tom contou que há novidades no horizonte, com reedição da biografia, conforme adiantou. 

Marcelino contou que “não é de ficar adulando conto” e compartilhou uma técnica literária que ele denomina “gastar o word”. “Gosto de rezar o meu conto. Ler bem rápido como se rezasse. Minhas personagens rezam também. Tenho que me convencer com o ritmo.” Para encerrar, Marcelino trouxe à mesa outra mulher, Nina Simone, a forma como ela entrava em simbiose com o piano e como isso trazia “eletricidade” para a música. 

Sobre o Fliaraxá

A CBMM apresenta, há 12 anos, o Festival Literário Internacional de Araxá, um festival literário com atividades acessíveis, inclusivas, antirracistas, éticas, educativas e em equilíbrio com a diversidade, economia criativa, raça, gênero e pessoas com deficiência. Toda a programação é gratuita, garantindo a democratização do acesso. O Fliaraxá tem, também, o patrocínio do Itaú, da Cemig e do Bem Brasil, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Participam, na qualidade de apoio cultural, a Prefeitura de Araxá, a Fundação Cultural Calmon Barreto, a TV Integração, a Embaixada Francesa no Brasil, o Institut Français e a Academia Araxaense de Letras. Todas as atividades do Festival são gratuitas, com a curadoria nacional de Afonso Borges, Tom Farias e Sérgio Abranches e curadoria local de Rafael Nolli, Luiz Humberto França e Carlos Vinícius Santos da Silva.

Serviço

12.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá
De 19 a 23 de junho de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Programação presencial na Fundação Cultural Calmon Barreto (Praça Artur Bernardes, 10 – Centro), e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @‌fliaraxa
Entrada gratuita
Informações para a imprensa: imprensa@fliaraxa.com.br
Jozane Faleiro  – 31 99204-6367/ Letícia Finamore – 31 98252-2002