Por Gabriel Pinheiro

A escritora cubana Teresa Cárdenas é convidada nesta 12ª edição do Fliaraxá. Dona de uma obra singular em seu país de origem, Teresa é conhecida pelo forte protagonismo negro em seu trabalho, que busca reescrever histórias que foram, durante muito tempo, invisibilizadas — questões que a aproximam muito da realidade brasileira e da literatura de autoria negra em nosso País. Conversamos com a autora cubana sobre seus livros, Cuba e sua relação com o Brasil.

Como a literatura surge na sua vida?

Bom, eu venho de uma família muito humilde. Morávamos em uma província próxima da capital. Uma família preta, humilde, só com a mãe. Quando comecei na escola, me dei conta de que existia outro mundo através das histórias. Não era o mesmo que eu vivia sozinha com minha mãe e com meu irmão, com essa família um pouco fechada. O livro, na escola, foi como uma porta para muitos mundos, para muitos caminhos possíveis, para muitos futuros. E isso foi muito impactante. Compreender que, em um diálogo, duas personagens podiam falar de qualquer parte do mundo, de qualquer cultura, de qualquer povo e me contarem essa história. Para mim, isso foi impressionante.

É muito curioso que, quando era menina, eu não lia livros para meninos e jovens. Eu lia livros de adultos. Você sabe, os livros para crianças nas escolas, muitas vezes, só botam uma pequena parte da história. E sempre fiquei com essa curiosidade, com essa fome de saber um pouco mais. Até que encontrei a biblioteca, um mundo encantado. Ninguém ia lá. Todos os meus amigos estavam correndo, brincando, jogando. Mas eu precisava chegar lá. Eu encontrava muito mais diversão nesse pequeno espaço mágico, muito silencioso. Eu gostava tanto, tanto. Os bibliotecários de todas as escolas por onde eu passei eram meus amigos. E sempre me indicavam algum livro. Assim foi como comecei no maravilhoso mundo da literatura.

Sua literatura é uma literatura de protagonismo negro. Para você, a literatura é um espaço de reparação, de reescritura de uma história que foi durante muito tempo negada à população negra?

Sempre falo que a missão da minha literatura é a reivindicação dessas pessoas, dessas famílias negras que durante tanto tempo estiveram invisibilizadas, não só na sociedade, mas até nos livros para crianças e jovens. Quando eu tinha oito, nove anos, eu não encontrava nos livros um rosto como o meu. Nem o meu cabelo. Eu não sabia o que significava “sonrojar” (ruborizar). Eu lia que as personagens “sonrojavam” (ruborizavam). Perguntei para minha mãe o que significava. E ela me falou: “Ah, é quando os brancos têm vergonha”.

Eram essas coisas, que pareciam básicas, pareciam muito simples, mas que significavam, naquele momento, muita coisa, que eu compreendia e aprendia de imediato. Minha literatura tem essa missão de que esses rostos e essas famílias apareçam como protagonistas nos livros para crianças e jovens para que outras crianças se sintam acompanhadas, se sintam representadas nos livros.

A literatura brasileira influencia a sua escrita? Quais obras, autoras e autores?

Eu gostaria de falar que sim, mas a verdade não é assim. Conheci o livro de Carolina Maria de Jesus, por exemplo, já sendo uma jovem. Em Cuba, se publica a literatura brasileira graças, sobretudo, à Casa das Américas, que é uma instituição muito importante. Bom, eu li, por exemplo, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, literatura infantil. E, agora, a Conceição Evaristo. Estamos muito felizes com a publicação de um livro de Conceição, o “Poemas de recordação”, no meu país.

Neste ano, o Brasil foi o país homenageado na Feira do Livro de Havana, e tivemos a enorme honra e alegria de ter a Conceição lá. Não somente ela, mas uma delegação muito grande daqui. Foi muito lindo, uma alegria! Mas também é uma tristeza que os livros de Conceição Evaristo, por exemplo, não se conheçam por lá. E é algo que precisamos muito. Porque essa escrita forte, essa escrita de recordação, de memória, essa escrita do protagonismo e empoderamento das mulheres negras, não temos muito, mas precisamos.

O mercado editorial é restrito em Cuba. Porque falta recursos por conta do embargo econômico. Então, se publica pouco. Mas amamos o Brasil, os cubanos amam o Brasil e sei que os brasileiros amam Cuba também. Acho que somos irmãos. O Brasil é um irmão grande, sabe? Não só para Cuba, mas para os demais países da América Latina.

Você disse uma vez ser conhecida pela crítica no seu país como “uma autora de temas difíceis”. A literatura me parece justamente um espaço possível para que tantos temas difíceis não sejam esquecidos — para não serem repetidos. A escravidão, por exemplo.

Sim, o tema da escravidão é um dos tantos que abordo na minha literatura. Por exemplo, o meu primeiro livro, “Cartas à minha mãe”, é um livro que foi escrito há quase 27 anos. Um livro que quando apareceu foi um pouco forte, a impressão foi polêmica. Algumas pessoas não estavam preparadas, em 1997, para ler um livro para crianças e jovens em que se falava da menstruação. Acho que, ainda hoje, é o único livro lá em Cuba para esse grupo etário que fala da menstruação, que é algo tão básico, natural. Que também fala da imigração, da discriminação racial, da violência sexual contra as crianças, a violência contra os velhos. São muitos temas. Sempre falo em todas as entrevistas que é um livro muito… ainda pequeno, é um livro muito pesado. Há ainda o tema da morte, das relações inter-raciais. Alguns autores, inclusive, se reuniram e protestaram contra ele. Estavam reclamando que o livro era muito forte e, acredite, que o livro era racista. Mas o livro combate o racismo e a discriminação racial. Afortunadamente, tive o apoio da minha editora e de algumas pessoas que disseram que eles estavam errados, que era um livro necessário em Cuba. Tanto foi assim que, depois, deram a ele o Prêmio da Crítica Literária, que é um prêmio que se dá aos livros mais vendidos em Cuba.

Esses são temas difíceis, mas acho que são temas necessários. São temas que, se eu, quando era criança, tivesse acesso a um livro que me falasse assim, tão francamente, talvez não teria cometido tantos erros, talvez não teria sofrido tanto, talvez saberia me defender melhor. Eu tive que me tornar mulher para me sentir bonita. Eu falei ontem isso: “Sou Teresa Cárdenas, sou uma escritora cubana e sou uma mulher muito bonita”. Quando eu era criança, eu não sabia o que era. Porque falavam sempre que eu era negra. E ser negra era sinônimo de ser feia. Eu não tinha armas para me defender. Eu não sabia o que era aquilo. Era racismo.

Então, meus livros acompanham essas crianças de hoje para que tenham como se defender, para que se sintam empoderadas, para que se sintam bem consigo mesmas, para que se vejam, para que possam protagonizar qualquer história. Acho que isso é o básico. Ontem, Eliana Alves Cruz me perguntou: “Para quem eu escrevo?” Eu sempre senti que escrevo para todos, mas principalmente para aqueles que precisam. Meus livros alcançam as pessoas. Eu tenho a sorte de não só ser uma autora respeitada pela crítica. Meus livros são muito estudados em universidades, por exemplo. Mas eles também são muito lidos e queridos pela gente do povo, a gente que caminha na rua, a gente humilde de onde eu saí. E isso para mim é muito lindo.

Sobre o Fliaraxá

A CBMM apresenta, há 12 anos, o Festival Literário Internacional de Araxá, um festival literário com atividades acessíveis, inclusivas, antirracistas, éticas, educativas e em equilíbrio com a diversidade, economia criativa, raça, gênero e pessoas com deficiência. Toda a programação é gratuita, garantindo a democratização do acesso. O Fliaraxá tem, também, o patrocínio do Itaú, da Cemig e do Bem Brasil, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Participam, na qualidade de apoio cultural, a Prefeitura de Araxá, a Fundação Cultural Calmon Barreto, a TV Integração, a Embaixada Francesa no Brasil, o Institut Français e a Academia Araxaense de Letras. Todas as atividades do Festival são gratuitas, com a curadoria nacional de Afonso Borges, Tom Farias e Sérgio Abranches e curadoria local de Rafael Nolli, Luiz Humberto França e Carlos Vinícius Santos da Silva.

Serviço

12.º Festival Literário Internacional de Araxá – Fliaraxá
De 19 a 23 de junho de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Programação presencial na Fundação Cultural Calmon Barreto (Praça Artur Bernardes, 10 – Centro), e programação digital no YouTube, Instagram e Facebook – @‌fliaraxa
Entrada gratuita
Informações para a imprensa: imprensa@fliaraxa.com.br
Jozane Faleiro  – 31 99204-6367/ Letícia Finamore – 31 98252-2002